quinta-feira, 30 de abril de 2009

E agora, auto-ajuda

«Um homem feliz não pode ser escritor», diz-nos Paul Theroux, um escritor que, para não comprometer o seu modo de vida e garantir a sua infelicidade, se radicou no Havai. A ideia é antiga mas não perdeu a sua validade: um homem feliz não pode ser escritor - ou artista, na sua versão mais lata - sob pena de se comprometer com um modo de vida que não será frutífero. Alguém que não concorde com esta disposição das cartas está a falhar a correcta interpretação do conceito de felicidade. Na linguagem popular - e não na erudita, que é a que eu domino - a felicidade é geralmente invocada como conceito absoluto e nunca relativo; ser feliz é uma forma muito mais comum do que estar feliz. Posso acreditar na hipótese académica de que é possível estar-se, a espaços, feliz; mas aceitar que é possível ser-se feliz é também aceitar uma definição de felicidade que acaba por ser abstracta, abrangente, e assassina. Não é por acaso que as conversas acerca da felicidade costumam passar pela ideia de realização pessoal: a ideia de que é possível a alguém realizar-se, isto é, cumprir o seu desígnio, é frequentemente avançada como o significado de felicidade. Ora, ser-se realizado é, objectivamente, estar acabado; completo; resolvido. Como ideia religiosa, funciona: a felicidade é a comunhão total com Deus, um fim último, um estado absoluto sem contestação; como ideia não religiosa a felicidade é, tal como o altruísmo, algo que contém um cavalo de tróia semântico, um inimigo dentro de portas que a destrói, um alicerce minado pelo adversário. Acreditar na hipótese de felicidade é assumir que a vida é um jogo com solução, como as damas, e não um jogo sem solução, como o xadrez (da Teoria dos Jogos). Os jogos com solução têm resposta, ou seja, é conhecida a estratégia perfeita que nunca é derrotada; os jogos sem solução não têm resposta, têm sempre um final desconhecido que nunca depende de um só jogador. A felicidade pode ser interpretada como a solução para uma aproximação omnipotente da existência - daí a sua aplicação religiosa; mas fora de um sistema que oferece ao indivíduo a estratégia perfeita, não é mais do que uma decisão precipitada que interrompe o jogo a meio. Ser-se feliz é ser-se realizado, é ter o trabalho pronto, as malas feitas, as luzes apagadas; é, em última análise, uma tristeza. Ser-se feliz é ter identificado o ponto final da nossa história. Alguém que o faça não pode, claramente, continuar a contar histórias.

Terrorismo nunca mais

Alguém que dê o endereço daquele clube das virgens à Al-Qaeda; pode ser que fiquemos todos a ganhar.

Get back



Ao 1:58 um homem de gabardina e chapéu de coco, fumando um cachimbo, trepa ao terraço de um edifício: it doesn't get any cooler than this.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Luta laboral

Quando a cobertura da rede dos telemóveis foi estendida aos túneis do Metro antevi o Apocalipse e roguei pragas a quem de direito. Hoje percebi que errei: não me lembrei dos maquinistas.

Baralha e volta a dar

A sequência de estações de Metro que percorremos quotidianamente sempre à mesma hora força a criação de um portfolio de caras que passam a ser, com o tempo, facilmente identificáveis. E, dia após dia, cedemos à tentação voyerística e vamos inventando biografias juntando peça a peça o puzzle das vidas dos outros, daqueles outros, peças muito livremente inspiradas na realidade. No entanto não exteriorizamos nenhum sinal de reconhecimento da sua existência; os estranhos não se falam, não trocam olhares cúmplices, ninguém dá a primeira martelada no muro da intimidade e da privacidade. Ignoramo-los, para todos os efeitos, mas secretamente alimentamos uma familiaridade inexistente alicerçada no resultado de minuciosas iterações especulativas surpreendentemente conclusivas: aquelas pessoas estão todas cuidadosamente catalogadas dentro do sistema de padrões que os nossos preconceitos criaram. Isso reconforta-nos.

Mas depois vêm as casual fridays e o edifício desaba em segundos.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Trunfo promocional

«(...) É, pois, absurda a atitude dos senhores do grupo Auchan. Em vez de banirem o livro do João Ubaldo Ribeiro das suas castas prateleiras, deviam encará-lo como um trunfo promocional, oferecê-lo, por exemplo, a todas as mulheres que fizessem compras superiores a cinquenta euros. Os senhores do grupo Auchan talvez não saibam mas um bom orgasmo, secreto, inesperado, proibido, dá mais felicidade a uma mulher do que os trocos que poupa comprando iogurtes de marca branca ou fraldas por atacado.»

Ana de Amsterdam

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Plano Pessoal de Leitura




(Estes não são livros que me levarão propriamente ao desconhecido; é uma lista profundamente conservadora, sei exactamente o que esperar de cada um destes títulos e não estou preparado para surpresas. É assim mesmo e é por isso que é um Plano Pessoal de Leitura: o romantismo é tranquilamente substituído por uma sensação de cumprimento de um dever.)

O estrangeiro

O estrangeiro que costuma estar no café que eu frequento tem uma mochila gasta e está sempre a ler ou a escrever ou a ler e a escrever; mas não foi isso que me levou a concluir que ele é estrangeiro. Ele tem um cabelo comprido meio aloirado, olhos claros, uma figura de Kurt Cobain sub-nutrido; mas também não foi isso que me levou a concluir que ele é estrangeiro. Apesar de nunca ter chegado a identificar um título, já percebi que os livros que ele lê não estão em português (quase sempre em inglês); mas ainda não foi isso que me levou a concluir que ele é estrangeiro. Concluí que ele é estrangeiro quando, há minutos, se levantou da mesa onde estava devidamente acompando por um bloco de notas e levou a loiça suja para o balcão antes de se dirigir para a caixa. Mas reconheço que preconceito lança um manto de nevoeiro sobre a minha capacidade de observação: não está fora de hipótese estarmos na presença de um português extramente cívico e bem educado, e que acumula esse respeito pelo outro - ou simplesmente o reconhecimento de que o outro existe - com uma obsessão pela leitura. Repito: não é um cenário totalmente impossível.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Os vasos

Um história deprimente, contada pelo Luís Serpa.

Saltos e hortaliças

Há dias tinha ficado com a impressão de que o carro que estava imediatamente atrás do meu era conduzido por Gentil Martins. Gentil Martins ainda conduz? A dúvida foi desfeita hoje de manhã aos microfones do Rádio Clube, onde Gentil Martins, de 78 anos, revelou que ainda trabalha e conduz e o diabo a quatro. O jornalista perguntou encantado onde ia Gentil Martins buscar «tanta energia»? Gentil Martins respondeu «ao desporto», que sempre tinha feito desporto, e que isso o «obrigara» a uma vida saudável: Gentil Martins nunca fumou, nunca bebeu, nunca se deitou tarde, sempre comeu verduras e peixe cozido, sempre repôs os níveis de hidratação adequados, sempre inspirou, expirou. Gentil Martins é, para todos os efeitos, um exemplo para a juventude. Mais uma razão para eu forjar uma meia-idade que não tenho.

Os católicos

«És tão linda, és tão grande, como a estátua do padroeiro no centro do largo municipal», canta Manuel Fúria dos Golpes no aguardado Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco, numa canção que é um hino ao amor maternal. Quem cometa o erro de confundir a Amor Fúria com a Flor Caveira do Tiago Cavaco encontra aqui todo o cardápio daquilo que as separa: na protestante Flor Caveira não há «padroeiros»; o «centro do largo municipal» é um sítio distante do subúrbio; e todos nós sabemos muito bem aquilo que os protestantes pensam da «Mãe» (aqui, supõe-se, com maiúscula). Esta rapaziada inverteu a cronologia cristã: primeiro vieram os protestantes, depois os católicos. Quase como se o protestantismo fosse o mainstream. Ou seja, uma grande contribuição para o renascimento do catolicismo: é na clandestinidade das catacumbas que estamos bem.

terça-feira, 21 de abril de 2009

A alegoria da caverna

Há dias, no pára-arranca da hora de ponta de Lisboa, um táxi que circulava na av. Defensores de Chaves deixou-se cair na tentação e avançou aquele par de metros que o colocou numa posição que bloqueava o trânsito da rua perpendicular à sua. Quem esperava o sinal verde na av. Elias Garcia assistiu à manobra animalesca do taxista e brindou o profissional com um merecido coro de buzinadelas mal mudou a cor do semáforo. O profissional não gostou, saiu do carro, e, esbracejando e gritando, explicou que «a culpa era da câmara» e que os restantes cidadãos deveriam apresentar as suas queixas às autoridades competentes, foda-se. Nós somos assim: aproveitamos as costas largas do «Estado» para lhe imputarmos todas as nossas javardices. O «Estado» não é só o pater familias do país inteiro, é também o bode expiatório de todos os nossos pecados. A falta de condições para se reduzir o papel do Estado em Portugal não se deve tanto à contabilidade das dependências materiais, mas sim à contabilidade das dependências psiquiátricas. O inferno são os outros; mas sem o inferno não há paraíso e nós queremos continuar a acreditar no paraíso.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

G pack



Estou profundamente apaixonado pela Amazon. Fiz a encomenda há três dias e o pacote acabou de ser literalmente depositado aos meus pés. Já começo a estranhar não vir um funcionário em pessoa perguntar se está tudo bem.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

No more beginnings

Oi?

O alcaide subterrâneo

Cruzei-me hoje de manhã com o nosso alcaide no Metro. Vinha sozinho, imperturbado, passo lento, mais um na multidão. A imagem é bonita: como bem observou a minha mulher, encontrar presidentes de câmara no Metro dá a sensação de país nórdico. Porquê? Defendo que de entre os muitos indicadores que podem ser usados para medir o grau de desenvolvimento de um país, a taxa de utilização dos transportes públicos por detendores de cargos electivos pode muito bem ser o mais eficaz: não só diz bem da rede de transportes públicos como revela um ambiente social que não intimida quem tem de responder nas urnas. «Andar de transportes» é um estigma social que o provincianismo português ainda não expurgou; ter um carro com motorista para nos levar à mercearia e às reuniões ainda é um privilégio que nos aproxima de São Paulo ou do Cairo e nos afasta de Londres ou Estocolmo. Quando um ocupante de um cargo público é visto no Metro ou no autocarro as pessoas notam. António Costa sabe isso e o seu gesto será tudo menos inocente, mas ainda assim é uma acção de campanha bem feita.

Guerra fria

«(...) Em todo o caso, solteiro por solteiro, acho que o PSD ficava melhor servido com Mota Amaral. (...)»

Eduardo Pitta (bold meu)

terça-feira, 14 de abril de 2009

Paulo Rangel, um nome do presente

A escolha de Paulo Rangel para cabeça de lista às eleições europeias pelo PSD é quase tão boa como a eliminatória que o Barcelona está a fazer contra o Bayern de Munique. Lembrem-se, «Manuela Ferreira Leite preferia Paulo Rangel»: a expectável vitória do PSD nas europeias será a primeira de muitas vitórias eleitorais da próxima primeira-ministra de Portugal. 

segunda-feira, 13 de abril de 2009

The Vals effect



«He is not a celebrity architect», diz o New York Times; «o arquitecto antiestrela», continua o Público; «A little-known Swiss architect», no Chicago Tribune. A óbvia falsidade destas declarações (Zumthor há muito que é «uma estrela» para a academia) revela a motivação que as forçou: não ser uma estrela aparece como virtude última do arquitecto e objecto de louvor. Se non è vero, è ben trovato: o carácter silencioso da sua arquitectura e a dimensão familiar da sua prática são precisamente os pilares onde assenta sua fama. Mas ao contrário de muitos outros, Zumthor merece-a inteiramente. Ele é a prova de como é possível vingar mediaticamente fazendo as coisas como elas sempre se fizeram e devem fazer: devagar e com dedicação. A vista para os Alpes tem com certeza ajudado. O comité do Pritkzer acertou em cheio.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Masoquismo

Os meus textos moralistas são quase sempre notes to self.

Ou sou só eu

O Hugo Almeida foi separado à nascença do Joaquin Phoenix.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Lonely hunter

Só para vos reencaminhar para o blogue do Pedro Jordão, sempre que puderem.

Páscoa

Tendo o Natal sido dado como assunto arrumado, é de esperar que o próximo ataque laico seja dirigido à Páscoa, um feriado que tem resistido estoicamente a batalhões inteiros de coelhinhos de chocolate. A vulgarização entre os gentios da expressão «boa páscoa» (aqui em mínuscula) ameaça o armagedão: não faltará muito para que se comece a denunciar a «monopolização cristã» da «páscoa» (o Judaísmo ficará de fora desta história por manifesta ignorância dos acusadores), um «feriado» que «já faz parte» da definição cultural de um povo que se quer laico e não discriminatório. A «páscoa», que como toda a gente sabe significa «fim-de-semana prolongado numa altura em que se está a sair do Inverno e ainda não é bem Verão mas que já dá para ir para a praia», parece ser um lame duck. Um alvo fácil. Um docinho no horizonte das celebrações do centenário da República. Eu vou cá estar para ver, porque vai valer a pena. Dar o desconto e entrar na cantilena natalícia, na celebração do nascimento de uma criança, é uma coisa; já tratar da apropriação de uma ressurreição me parece um osso mais duro de roer e matéria para muitos contorcionismos semânticos. Porque a Páscoa não é da «família»; é do homem que mataram à Sexta-feira e que voltou ao Domingo para contar. Que volta aos Domingos para contar.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A estante higiénica

Como o Eduardo Pitta mostra bem, o elitismo (ou a qualidade) de uma livraria nota-se mais por tudo aquilo que lá está do que pelos best-sellers (ou o camandro) que por snobismo se mantêm afastados das estantes virginais: é sempre de desconfiar quando uma casa que quer vender livros se recusa vender certos livros como estratégia de promoção. Até a Tema tem revistas de maminhas e de motocicletas e de telenovelas, e ninguém se esquece que é lá que se podem comprar a Granta e a New Yorker e a Literary Review (embora certo crítico literário considere a Literary Review menos qualificada do que a TV Guia - coisa que felizmente nunca terá passado pela cabeça dos senhores da Tema - e de a Granta custar 1/4 de uma assinatura anual de 47 edições da New Yorker - viva o câmbio, viva o mercado livre, viva o grande satã que são os Estados Unidos da América.) 

Chacina

Em breve: a impressionante história da mulher que entrou na Tema, pediu a Vanity Fair sem especificar se era «a americana» ou «a inglesa», e conseguiu escapar com vida. Quem esteve no local assegura: «foi uma chacina.»

segunda-feira, 6 de abril de 2009

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Mónica Sofia

Estou muito desiludido com a quantidade de pessoas que continuam a validar a lobotomia colectiva que é a tradição do «primeiro de Abril» ao constantemente dar crédito e cobertura às chamadas «notícias falsas». Estou particularmente desiludido com qualquer referência à TimeOut desta semana, não pelo facto de todos - todos - os artigos serem - e isto cansa-me - «mentira», não pelo facto de ser sempre o mesmo casal a aparecer nas fotos dos artigos (não dar por isto só pode ser o resultado de uma lobotomia seguida de uma castração e da doação dos dois olhos à ciência), não pelo facto de na capa estar um eléctrico a voar, mas porque o artigo do Lourenço Viegas apresenta um estilo - o estilo!, senhores - que não tem absolutamente nada a ver com o que - vénia - Lourenço Viegas costuma escrever: achar verosímeis as semelhanças físicas entre o «candidato gay à câmara de Lisboa» e o «chefe duas estrelas michelin» do Parque Mayer, ou não achar estranho que a argumentista do filme português que num festival belga foi comparado a Magnolia é extremamente parecida com a autora de O Meu Pipi, ainda é como o outro, mas colocar em cima da mesa a hipótese de Lourenço Viegas deixar cair a metáfora, as comparações selvagens, a obsessão pelo pormenor, as extrapolações identitárias de uma nação a partir da consistência da côdea do pão para dar «credibilidade» a uma crítica gastronómica, é coisa para me chatear, é.

Entretanto, muito foi dito sobre a Playboy portuguesa e muito bem dito, mas a taça leva-a com toda a justiça o Ivan Nunes:

«Os artigos da Playboy, em geral, são bons. No entanto, achei o artigo moreno melhor do que o artigo loiro.»

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Is Gisele the most beautiful woman in the world?

Enquanto dou cabo das reservas da Portucel para o triénio 2009-2011 ao imprimir o artigo da Vanity Fair que o Rogério Casanova sugeriu no blogue dele, não pude deixar de reparar que a mesmíssima Vanity Fair tem outros artigos que não são sobre países gelados que foram à falência, como por exemplo esta colecção das aparições de Gisele Bündchen na revista la palissianamente intitulada Gisele Sells! (o ponto de exclamação é deles), ou esta fabulosa colecção de fotografias de Annie Leibovitz (provavelmente a minha lésbica favorita), de onde roubei a imagem para este post, e que mesmo assim continua a haver pessoas que preferem fazer referências a artigos sobre países gelados que foram à falência.


Boa dia

Boa frase, estes são os meninos; meninos, apresento-vos a boa frase:

«A consummate actor who followed a scripted life, he always prepared a face to meet the faces that he met.»

Sobre Ivar Kreuger, em Madoff and his models, na New Yorker de 23 de Março, devidamente sublinhada.

É desta que me despeço por hoje

«Num ensaio dedicado a Friedrich Nietzsche, Thomas Mann chama-lhe "o grande mestre das máscaras". Nietzsche nasceu em meados do século XIX e desapareceu em 1900. É o "pai espiritual" do século que desistiu de Deus e continua - como "mestre" insubstituível na sua permanente luminosidade de sombras - transfigurado neste que dá agora os primeiros passos. Sem a devida consciência, as elites do neófito XXI caminham às cegas por entre o riso eterno da loucura genial do filósofo que nos adivinhou. Nós somos, em carne viva, as "máscaras" que Nietzsche inventou para conseguir suportar o insuportável "fardo" da sua vida, essa maravilhosa e terrível estrela que dança. Uma estrela que todos os dias nos dana e simultaneamente nos salva.»

João Gonçalves, a tentar emprestar dignidade aos blogues a soldo da Sábado.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Tenho estado a controlar-me para não comentar as merdas que são ditas na TimeOut pelos «notáveis» sobre Lisboa

E agora, se me dão licença, chegou a New Yorker de 23 de Março, o mesmo é dizer a New Yorker que chegou às bancas a 17 de Março. A globalização ainda tem muito caminho a percorrer.

No Pingo Doce (IV)

O mundo em crise e eu a escrever sobre o Pingo Doce do Rossio; isto, para mim, é a blogosfera.

No Pingo Doce (III)

Enquanto estive no pára-arranca da caixa fiquei a observar as pessoas que entravam pela porta, as suas caras, tentando adivinhar-lhes a nacionalidade. A variedade de padrões étnicos do Pingo Doce do Rossio nunca deixa de me surpreender. Para quem não sabe, o Pingo Doce do Rossio é o Pingo Doce mais cosmopolita de Lisboa: sempre que lá vou percebo que não pertenço exactamente ali, que as pessoas à minha volta pouco partilham dos meus contornos biográficos, e que isso parece acontecer com todas as pessoas que ali estão. Ninguém, nenhum grupo com aspirações de homogeneidade, se pode assumir como o cliente tipo do Pingo Doce do Rossio. Esta é toda uma tese sócio-urbana, e o trajecto pela rua Augusta com dois sacos debaixo do braço ofereceu-me a oportunidade de imaginar um modelo que, analisado agora com distância e isenção, me orgulha muito: tem como objectivo classificar os supermercados com base na diversidade das nacionalidades das pessoas que o frequentam de modo a atribuir a cada um desses estabelecimentos comerciais o respectivo «Grau de Cosmopolitismo». Para o conseguir, cheguei a um sistema de pontuações baseado numa escala que premeia o exotismo e castiga o provincianismo das proveniências de cada um. Assim, e porque estamos a falar de um supermercado de Lisboa, um lisboeta valerá menos pontos do que um turista ou um imigrante. Mas as coisas não são tão simples como parecem. Um turista e um imigrante valem o mesmo número de pontos? Direi que não; que um turista valerá menos do que um imigrante, como regra geral, mas que um turista vindo, suponhamos, da Coreia do Sul, vale mais do que um imigrante brasileiro. O grau de familiaridade com a cultura portuguesa é inversamente proporcional à pontuação da pessoa, seja ela turista, imigrante, ou estudante. Um estudante erasmus, logicamente, é ralé, está na base da tabela porque nada acrescenta dada a previsibilidade do seu comportamento. O imigrante brasileiro, por ter sempre um avô português, também pontua pouco, menos do que um imigrante PALOP. Um turista brasileiro ou um turista PALOP já pontuam mais, pois são mais raros. Qualquer turista europeu pontua pouco, também, mas um turista dinamarquês é bem mais valioso do que um turista italiano, como é óbvio. A partir daqui, as coisas começam a ficar interessantes. Um imigrante africano não PALOP só é suplantado por um turista africano não-PALOP (um turista Nigeriano instalado no RITZ é o el-dorado do sistema); os turistas americano e japonês estão a meio da tabela, mas um imigrante americano ou japonês já começa a ser uma elite; um havaiano bolseiro da Gulbenkian é ouro, um argentino jogador de futebol já tem menos cotação; um paquistanês vale menos do que um afegão; e assim sucessivamente. Um chulo macaense é charme; um poeta mexicano deverá ser objecto de estátua. E um esquimó é o fim da picada. Creio inclusivamente que no Pingo Doce do Rossio já só me falta ver um esquimó. Mas haja esperança.

No Pingo-Doce (II)

À minha frente está um casal novo, loiro, com «erasmus» escrito na legenda. Falam uma língua que eu não entendo e que deduzo ser escandinava (ou próxima). Mesmo se a cor da pele e dos olhos não os tivesse denunciado, a indumentária teria dado conta do recado: ele vestia calças de ganga e chinelos de praia. A dada altura entra um tipo grande com dois brincos nas orelhas que o meu estudante escandinavo imediatamente identifica «Lsadskn dfri Daniel dfgij hostel» (ainda falava só para a namorada, pelo que foi isto que eu decifrei). «Daniel!», acenou, «this is Daniel from my hostel» (a presença de uma segunda nacionalidade forçou o inglês, para gáudio do blogger voyeur imediatamente atrás deles). «This is my girlfriend, she just landed today, we're going do the Algarve on friday». O Daniel, acusando o toque da presença da namorada do escandinavo, bateu no ombro dele, disse-lhe que estava com bom aspecto, e que eles não deveriam ir para Faro mas sim Tavira, que era mais bonito, «really nice». A conversa de circunstância permitiu mais dois ou três comentários sobre o «portuguese wine» e sobre o modo como se vai de Faro para Tavira. Toda linguagem corporal do Daniel denunciava uma auto-confiança contagiante e fazia dele um embaixador do país perante os nórdicos. Percebi que isto é uma das coisas de que mais gosto nos portugueses: por muito frágil que seja o nosso patriotismo, ele nunca se deixa ficar mal perante uma «namorada escandinava». E enquanto assim for, seremos viáveis.

No Pingo Doce (I)

Num Pingo Doce apinhado ao fim da tarde, dou por mim na fila para uma caixa que ostenta um sinal indicativo de «prioridade» a quatro grupos de pessoas, cujo grafismo não constituiu um grande desafio de interpretação: «grávidas», «deficientes», «idosos», e «pessoas com bebés de colo». O sinal é verde, bonito, eficaz, e não deixa de se fazer notar. Houve, evidentemente, esforço e dedicação na construção daquele sinal, mas que isso não nos desvie da lição a tirar: que raio de gente somos nós que precisamos de sinais para darmos prioridade num fila de supermercado a grávidas, deficientes, idosos, ou pessoas com bebés de colo?

O fundo

Águas cadas vez mais claras, por Filipe Nunes Vicente.

Something is rotten in the state of Denmark



«(...) The biggest surprise of Mr Obama’s first two months has not been his policy preferences (most of which he advertised), but a certain lack of competence. (...)»

The Economist