segunda-feira, 26 de maio de 2014

O populismo

Marinho Pinto, Marine Le Pen, Farage, Tsipras, a "Aliança Dourada", os "neo-nazis", etc: estamos todos de acordo, o «populismo» saiu à rua. Mas que distingue o «populismo» de outras vitórias eleitorais mais nobres? Se o «populismo» é o fenómeno político que caça votos em troca de promessas irrealistas, em que sentido não foi a vitória de Passos Coelho em 2011 uma vitória «populista»? E de Sócrates em 2009? E não foram Cavaco Silva e António Guterres «populistas» no seu tempo? E o grande vencedor de todas as eleições em Portugal desde 1974: querem mais populista que o PCP? O rótulo não ajuda a perceber nada do que se passou ontem na Europa; deixemo-lo cair.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Lisboa

O sítio mais masculino do mundo é um salão de beleza. Não o salão de beleza, mas um salão de beleza: o barbeiro onde corto o cabelo desde que me lembro de cortar o cabelo. É gerido por dois sócios que, reza a lenda, estão desavindos há décadas. Trabalham lado a lado diariamente, são ambos pessoas cordatas e bem educadas, mas aparentemente não se falam. Ocupam as cadeiras das pontas de uma fila de cinco. A discussão, conta-se, nasceu da vontade de um em fazer obras no espaço gerando a oposição do outro. Olhando à volta, não custa a crer que tenha sido assim. Dá a sensação de que tudo está como sempre foi: as cadeiras são em pele boa mas estão rotas, os painéis são em madeira nobre mas estão partidos, as torneiras são topo de gama - gama de 1974. O sítio transborda heterossexualidade. Ao desprezo pela decoração de interiores junta-se um silêncio circunspecto que é frequentemente cortado para se falar de generalidades: política, futebol, o antigamente, a terra, o totobola que um vizinho ganhou. Nunca de assuntos pessoais: a barba e o cabelo são cortados porque «já está a ficar grande» ou «vem aí o calor». Os diálogos vão assim:

- Então, vamos dar aqui um corte?
- Sim, um corte grande.

Passados vinte minutos:

- Então, assim está bem?
- Está, obrigado.

As considerações estéticas são todas de carácter reaccionário: o objectivo é sempre repor o cabelo ao estado que apresentava no passado, lamentando que ele tenha crescido revolucionariamente entretanto. A ordem é preferida ao progresso; a certeza (cabelos curtos) promovida, a incerteza (cabelos compridos) combatida. A passagem do tempo é condenada, mas sem grande agitação. As amarguras da vida são enfrentadas com um solene «pois». Vai-se andando. Daqui a nada está aí o verão.

Pela porta de vidro vêem-se as árvores lá fora, que vão mostrando as estações do ano e marcam o bairro com uma cadência de cheiros reconfortante. Por trás das árvores fica uma igreja. À hora certa os sinos tocam. Às vezes passa por lá o carteiro. Muitas vezes paga-se depois, porque não há trocado. Crianças como eu levam agora lá os filhos, netos de clientes antigos. O bairro não mudou assim tanto. O bairro mudou completamente. Aqueles espelhos são exactamente os mesmos. Cresci a olhar para eles, a olhar para mim, sob o pretexto de estar a acompanhar o corte do cabelo. Quase que vejo ali a minha mãe: a franja não é tão curta, as orelhas não podem ficar destapadas, o meu irmão na cadeira do lado. Na rua de trás morou a minha bisavó (mãe da mãe da minha mãe) até morrer, de mão dada à minha tia-avó, ia dormir porque estava cansada. Lembro-me de lá ir, do sol a entrar por uma janela e de um corredor que me parecia comprido (devia ser curto). Noutra rua acima fica a pastelaria onde íamos comer éclairs de chantilly, os preferidos da minha mãe. Mais à frente fica o prédio onde a minha avó viveu, tarde, e viu morrer o meu avô. Daquele apartamento via-se a cidade toda, uma vista deslumbrante sobre o Tejo, do castelo até à ponte, dali era impossível não se amar isto.

Quando o movimento abranda, os cabelos que caíram ao chão são varridos. «Você tem muito cabelo, devia fazer negócio disto», diz-me, como sempre. A sala tem umas escadinhas que levam a uma cave. De cá de cima vê-se que lá em baixo há um bar, talvez uma memória de uma ocupação anterior. Nunca lá fui.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Inferioridade numérica



Quando o Luisão fez o quarto golo, aos sete minutos do prolongamento, desempatando a quarta eliminatória da Taça de Portugal com o Sporting - naquele que foi um dos jogos do ano - festejei como não tinha festejado o hat-trick de Cardozo. Não festejei tão efusivamente como gostaria porque estava num jantar rodeado de amigos do Sporting, que tinham na minha alegria a sua tristeza simétrica. Mas quando o jogo acabou, e após ter-se gerado o consenso à mesa de que tínhamos acabado de ver um jogo enorme e que qualquer das equipas teria dado um vencedor justo, não pude deixar de exaltar o Luisão: ali estava o capitão, um jogador que já tinha conquistado o seu lugar na galeria dos notáveis da história do Benfica, alguém que, como nós, e apesar de ter nascido em Amparo, São Paulo, era um benfiquista de coração.

«Não me atires poeira para os olhos», ouvi, subitamente. À mesa também estava um adepto do Porto que, com aquela soberba que caracterizou os adeptos do Porto até há três semanas, continuou: «O Luisão só está no Benfica porque ninguém o quer.» Uma pessoa sente-se, pois claro que se sente, e não fui capaz de deixar aquela enormidade em claro. Contra todas as regras da elementar etiqueta, tentei defender o contrário: que não, não senhora, o Luisão está no Benfica porque o Benfica é o melhor clube do mundo e o Luisão o melhor central do mundo. Mas ele ficou na dele, provavelmente dizendo que o Maicon era melhor que o Luisão, e eu fiquei na minha.

Claro que o Luisão não é o melhor central do mundo: o melhor central do mundo é o Garay. Mas o Luisão não é só um grande defesa-central: é um líder. E os líderes caracterizam-se por uma coisa: são melhores que nós. O Luisão é-nos moralmente superior, não lhe devemos nada a não ser pura vassalagem. 

Pensei muito naquela discussão sobre o Luisão no final do jogo de ontem. E julgo que Jorge Jesus também terá pensado muito em Luisão quando fez uma homenagem aos «jogadores» que o acompanham há cinco anos: sim, há Cardozo, Maxi Pereira e Rúben Amorim, mas era para Luisão que Jorge Jesus falava. Porque ontem não foi apenas o líder do grupo mas também o melhor em campo, fazendo uma exibição perfeita, transbordando uma confiança que contagiou Oblak, Garay, Siqueira e Amorim, por exemplo.

Nunca me esquecerei do jogo de ontem: uma lição de bem defender em casa da Nujentus, no estádio mais temido do futebol italiano. Nunca me esquecerei da exibição do Luisão, que ontem jogou pelo Enzo, pelo Garay, pelo David Luiz, pelo Javi Garcia, pelo Aimar, pelo Di Maria, pelo Rui Costa, pelo Simão, pelo Paneira, pelo Isaías, pelo Mozer, pelo Ricardo Gomes, pelo Valdo, pelo Chalana, pelo Shéu, pelo Simões, pelo Coluna, pelo Eusébio. Por todos nós.

Não interessa se jogamos com 11, com 10, com 9, ou com oito e meio, como foi o caso de ontem (Sálvio jogou com o braço ligado); desde que o Luisão esteja em campo o adversário estará sempre, mas sempre, em inferioridade numérica.