segunda-feira, 24 de junho de 2013

Não é preciso jogá-lo

Deixar de acreditar em Deus por causa da ciência (do conhecimento) é o pior motivo à excepção de todos os outros. Deus, através das religiões, serve para dar resposta a três questões: a morte, a moral, e a inquietação existencial (quem somos, de onde vimos, para onde vamos). Das três, duas são resolvidas de maneira mais satisfatória pelo conhecimento (a moral e a inquietação existencial). Resta a morte, o maior capital da religião, e as suas questões (o que acontece a quem morre, o que nos acontece quando morremos) que são a última fronteira do ateísmo. Porque este é um jogo viciado: jogá-lo é jogá-lo no campo da fé ou do mais louco dos esoterismos. Mas não é preciso jogá-lo.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O acto de fé

O acto de fé não é acreditar na existência de Deus; é acreditar que o nosso melhor se deve a ele, e que o nosso pior existe apesar dele. Ou seja, Deus é o universo observável: só é real na medida em que é possível que alguém o observe, e que essa observação produza efeitos concretos. Fora dessa possibilidade do observador, o universo - e Deus - é irrelevante, porque inconsequente (sem causalidade) e impossível de testar. Neste sentido, Deus é inegável.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Vai longe

«Os jornalistas aproximam-se de António José Seguro e perguntam: concorda com a greve dos professores em dia de exames? Seguro responde: apelo ao bom senso das partes porque o governo deixou gangrenar o problema. E os jornalistas repetem a pergunta. E Seguro repete a resposta. Percebo o que se passa na cabeça de Seguro durante esta farsa. Por um lado, apoiar a greve seria revoltar milhares de famílias que têm os filhos em pânico e as férias arruinadas. Por outro lado, condenar a greve seria alienar milhares de professores que também votam PS. Melhor não dizer nada e não se comprometer com nada, na esperança piedosa de não assustar as manadas. Seguro representa bem o tipo de político que os partidos geraram: um holograma simpático que, na hora do aperto, não gosta de ser apertado. Vai longe. Nós, com líderes destes, é que não.»

«O Homem Invisível», João Pereira Coutinho

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Santo António já se acabou

Feriado. Aproveito para ir ver o Tejo reconstruído entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço. Tudo o que foi feito me parece bem, e tudo o que está planeado também. As obras é que ainda não parecem ter fim à vista: quem quer passear tem de tolerar o estaleiro. O pior veio depois. A pretexto de acalmar os miúdos, fomos ao Terreiro do Paço comer um gelado. Sentámo-nos numa daquelas esplanadas com um nome inglês (neste caso, o «Aura Lounge Café») e preços também ingleses. Quisemos experimentar o que o turista experimenta. Não correu bem. Apesar de haver poucas mesas com clientes, tudo demorou muito tempo, o que é particularmente incomodativo para quem tem duas crianças inquietas à espera do gelado. Mas o gelado lá veio: uma bola de chocolate para um, uma bola de nata para outro. Há muito tempo que não ficava tão estupefacto: o gelado de nata tinha sido servido depois do gelado de chocolate e com a mesma colher. Uma Frize Limão também chegou, como dizem, «natural». Para pagar, outra espera de aeroporto. O troco é que não veio. Com espera, ou sem espera. Tivemos de ir atrás dele, para dentro do café, onde uma sala vazia servia de entretém a uma dúzia de empregados. O patrão, evidentemente, estava fora. Uma tristeza. Se Portugal fosse um país que precisasse do turismo, diria que era uma tragédia.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Dois anos de PSD-CDS

Estes dois anos mostraram que foi um erro ter chumbado o PEC-IV e provocado eleições antecipadas. Não porque o PEC-IV fosse solução para alguma coisa, mas porque, com PEC-IV ou com MoU, estes dois anos seriam sempre muito penosos e desgastantes politicamente. Se não estivesse refém da imprudência que são as «directas», o PSD deveria ter percebido que 2011 não era o ano certo para chegar ao poder. Devia ter esperado que fosse o PS a aplicar as medidas inevitáveis de aumento de impostos e cortes nos apoios sociais; devia ter obrigado José Sócrates a cumprir esse papel. Mas Passos Coelho percebeu que o PSD não o toleraria mais tempo na oposição e trataria de o substituir entretanto. Por isso, saiu-nos a fava, um governo liderado pela dupla Passos Coelho / Miguel Relvas, dois políticos que não são melhores do que a pior dupla que já liderou o PSD, os inefáveis Luís Filipe Menezes e Ribau Esteves. O resto é incontroverso: foram dois anos de pesadelo, que só um primeiro-ministro muito hábil poderia ter tornado diferente. A substituição de Miguel Relvas por Poiares Maduro (e Marques Guedes), e a eventual remodelação nas finanças a acontecer até ao final do ano, darão ao governo uma estabilidade que, aliado ao facto de o PS estar confortável com António José Seguro, levarão este governo até 2015, onde a única questão em aberto será saber com quem irá o PS coligar-se.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Some other

«We’re conquistadors. I’m Vasco de Gama and you’re some other Mexican.»

Roger Sterling - Mad Men, «A Tale of Two Cities» (2013)

domingo, 2 de junho de 2013

Os sub-chefinhos

Os sub-chefinhos são patéticos. Os sub-chefinhos, nós, somos patéticos. Falo da epidemia do empratamento caseiro. Da pandemia (porque o fenómeno é global) das candidaturas espontâneas ao guia Michelin. O que se passa é o seguinte: somos uns snobes. Todos. Em vez de estar, diligentemente, a tentar aprender e reproduzir as receitas das nossas mães, passamos os fins-de-semana a fazer aveludados de castanhas quando uma sopa de espargos servia perfeitamente, a fazer braseados quando o que queríamos era um grelhado, a fazer camas em lugar de acompanhamentos de travessa. A culpa é da televisão. Da televisão por cabo, sejamos justos com Filipa Vacondeus - que nos ensinava como fazer um jantar para 12 pessoas com recurso aos restos do almoço de ontem - e, vénia prolongada, Maria de Lurdes Modesto. Elas - não é pormenor tratarem-se de mulheres - fizeram serviço público, explicavam como se usava o azeite e o alho. Os chefes da televisão por cabo, pelo contrário, todos homens e quase todos estrangeiros, não estão ali para fazer serviço público. Estão ali para, sobretudo, alimentar o ego do espectador. Do espectador masculino. Não é por acaso que aquela actividade ganhou a alcunha de food-porn: é porque apela quase exclusivamente aos homens. Àqueles homens, como eu, que não vêem na cozinha o espaço utilitário que é, que serve para alimentar, diariamente, uma família. Não: para nós, a cozinha é só mais um palco ao nosso dispor, de onde esperamos sair em ombros, sob um coro de ovações. Não entramos na cozinha para servir quem nos vai acompanhar à mesa, mas para chamar a atenção para o nosso talento. Isto é uma vergonha. Eu nunca fiz um arroz de pato (verdade), mas sou frequente no magret de pato acompanhado por couscous de sultanas e amêndoa torrada. Vê-se logo que é uma receita toda posta em bicos dos pés porque é preciso dois itálicos para a escrever correctamente. Aquilo que nós, os sub-chefinhos, devíamos ser era ajudantes de cozinha. Das nossas mães. Que já o foram das nossas avós. Porque as nossas mães são capazes de preparar um almoço faustoso, mesmo quando só telefonamos a avisar que vamos aparecer meia hora antes. Nós não. Nós, os sub-chefinhos, começamos logo por não preparamos almoços, só jantares. E só preparamos jantares com uma semana de antecedência. Precisamos de uma semana para consultar a internet, toda a biblioteca de livros de cozinha que temos em casa (as nossas mães têm só dois livros, escritos à mão, todos cheios de nódoas), para perceber onde vamos poder comprar óleo de peixe e as ervilhas-bebá, o anis-estrelado e o estragão. Para depois, quando chegado o dia, cometermos o pecado original do sub-chefinho: o empratamento. Onde já se viu um bom anfitrião empratar coisas? O empratamento é o derradeiro gesto para chamar a atenção do comensal que, coitado, está com fome e não quer ser incomodado, para o nosso enorme talento. É de um mau gosto atroz. A minha mãe, que, como todas as mães de Portugal, cozinha maravilhosamente, nunca empratou nada na vida. Aliás, o verdadeiro talento perdido da tradição portuguesa é, como diz e muito bem Quim Barreiros, o enfeitar da travessa. Uma travessa bonita é um elogio ao convidado; um empratamento foleiro (são sempre) é um convite à glorificação do sub-chefinho. Como se não bastasse as pessoas terem que aturar todos os nossos devaneios regionais-gastronómicos (quem não adora a cozinha tailandesa), ainda têm que ser sujeitadas às nossas idiossincrasias estéticas e a esse nacional-socialismo culinário que é o empratamento: vais comer o que eu quero que comas, como eu quero que comas, e na precisa quantidade que eu quiser. Por isso, paremos de empratar cenas, deitemos fora todos os livros de cozinha que não foram escritos por (a) a nossa avó ou (b) a Maria de Lurdes Modesto, e concentremo-nos em tentar fazer os pratos com que crescemos. Não vamos conseguir, porque nos falta uma grande dose de humildade, mas far-nos-à bem tentar. Agora tenho de acabar o texto porque os meus pais vêm jantar cá a casa e, felizmente para eles, a minha mulher (que não é uma sub-chefinha reles como eu) preparou um coelho guisado na panela com arroz de miúdos (absolutamente não-empratável) divinal e ainda tenho de ir comprar vinho.