domingo, 2 de junho de 2013

Os sub-chefinhos

Os sub-chefinhos são patéticos. Os sub-chefinhos, nós, somos patéticos. Falo da epidemia do empratamento caseiro. Da pandemia (porque o fenómeno é global) das candidaturas espontâneas ao guia Michelin. O que se passa é o seguinte: somos uns snobes. Todos. Em vez de estar, diligentemente, a tentar aprender e reproduzir as receitas das nossas mães, passamos os fins-de-semana a fazer aveludados de castanhas quando uma sopa de espargos servia perfeitamente, a fazer braseados quando o que queríamos era um grelhado, a fazer camas em lugar de acompanhamentos de travessa. A culpa é da televisão. Da televisão por cabo, sejamos justos com Filipa Vacondeus - que nos ensinava como fazer um jantar para 12 pessoas com recurso aos restos do almoço de ontem - e, vénia prolongada, Maria de Lurdes Modesto. Elas - não é pormenor tratarem-se de mulheres - fizeram serviço público, explicavam como se usava o azeite e o alho. Os chefes da televisão por cabo, pelo contrário, todos homens e quase todos estrangeiros, não estão ali para fazer serviço público. Estão ali para, sobretudo, alimentar o ego do espectador. Do espectador masculino. Não é por acaso que aquela actividade ganhou a alcunha de food-porn: é porque apela quase exclusivamente aos homens. Àqueles homens, como eu, que não vêem na cozinha o espaço utilitário que é, que serve para alimentar, diariamente, uma família. Não: para nós, a cozinha é só mais um palco ao nosso dispor, de onde esperamos sair em ombros, sob um coro de ovações. Não entramos na cozinha para servir quem nos vai acompanhar à mesa, mas para chamar a atenção para o nosso talento. Isto é uma vergonha. Eu nunca fiz um arroz de pato (verdade), mas sou frequente no magret de pato acompanhado por couscous de sultanas e amêndoa torrada. Vê-se logo que é uma receita toda posta em bicos dos pés porque é preciso dois itálicos para a escrever correctamente. Aquilo que nós, os sub-chefinhos, devíamos ser era ajudantes de cozinha. Das nossas mães. Que já o foram das nossas avós. Porque as nossas mães são capazes de preparar um almoço faustoso, mesmo quando só telefonamos a avisar que vamos aparecer meia hora antes. Nós não. Nós, os sub-chefinhos, começamos logo por não preparamos almoços, só jantares. E só preparamos jantares com uma semana de antecedência. Precisamos de uma semana para consultar a internet, toda a biblioteca de livros de cozinha que temos em casa (as nossas mães têm só dois livros, escritos à mão, todos cheios de nódoas), para perceber onde vamos poder comprar óleo de peixe e as ervilhas-bebá, o anis-estrelado e o estragão. Para depois, quando chegado o dia, cometermos o pecado original do sub-chefinho: o empratamento. Onde já se viu um bom anfitrião empratar coisas? O empratamento é o derradeiro gesto para chamar a atenção do comensal que, coitado, está com fome e não quer ser incomodado, para o nosso enorme talento. É de um mau gosto atroz. A minha mãe, que, como todas as mães de Portugal, cozinha maravilhosamente, nunca empratou nada na vida. Aliás, o verdadeiro talento perdido da tradição portuguesa é, como diz e muito bem Quim Barreiros, o enfeitar da travessa. Uma travessa bonita é um elogio ao convidado; um empratamento foleiro (são sempre) é um convite à glorificação do sub-chefinho. Como se não bastasse as pessoas terem que aturar todos os nossos devaneios regionais-gastronómicos (quem não adora a cozinha tailandesa), ainda têm que ser sujeitadas às nossas idiossincrasias estéticas e a esse nacional-socialismo culinário que é o empratamento: vais comer o que eu quero que comas, como eu quero que comas, e na precisa quantidade que eu quiser. Por isso, paremos de empratar cenas, deitemos fora todos os livros de cozinha que não foram escritos por (a) a nossa avó ou (b) a Maria de Lurdes Modesto, e concentremo-nos em tentar fazer os pratos com que crescemos. Não vamos conseguir, porque nos falta uma grande dose de humildade, mas far-nos-à bem tentar. Agora tenho de acabar o texto porque os meus pais vêm jantar cá a casa e, felizmente para eles, a minha mulher (que não é uma sub-chefinha reles como eu) preparou um coelho guisado na panela com arroz de miúdos (absolutamente não-empratável) divinal e ainda tenho de ir comprar vinho.