O primeiro momento televisionado a que assisti do festival-RFM incluía um ser humano do sexo feminino de idade indefinida chamada «Ivete Sangalo» aos pulos no palco enquanto parecia estar a tentar cantar, mas não fiquei com a certeza absoluta disso. Uns dias mais tarde, pude confirmar, noutra transmissão televisiva digna de suicídios em massa chamada «Globos de Ouro» (que tem no entanto o mérito de ser a única cerimónia daquele género no mundo totalmente improvisada), que «Ivete Sangalo» de facto tem por hábito tentar cantar, embora possamos atribuir essa precipitação desgraçada a um efeito secundário da ingestão por parte de «Ivete Sangalo» de uma substância provavelmente ilegal destinada a tornar esses momentos não tão insuportáveis para «Ivete Sangalo» como o são para todos nós que, por imposição moral ou indisponibilidade financeira, não ingerimos a mesma substância.
O segundo momento que a televisão me mostrou do festival-RFM revelou um gigante a fazer um solo de guitarra durante 19 minutos, naquilo que era obviamente o fim de um concerto, com a particularidade de a guitarra estar deitada no chão e o guitarrista estar de pé, o que me deixou descansado: não estava a perder nada, obviamente aquele não estava a ser um bom concerto rock, os bons concertos rock não acabam com guitarras deitadas no chão e com os guitarristas de pé, acabam com os guitarristas deitados no chão e com as guitarras por todo o lado. Fui capaz de perceber que se tratava de John Mayer, uma pessoa que, apesar de tudo, merece todo o nosso respeito, todo o nosso respeito.
O terceiro momento do festival-RFM que me foi vergastado foi, provavelmente, o mais deprimente, e explica-se rapidamente: no palco estava o João Pedro Pais a fazer de conta que não era o João Pedro Pais mas sim uma estrela rock, comportamento chocante que 168 pessoas testemunhavam ao vivo.
O quarto momento deu-se no mesmo dia do terceiro, o que prova a extraordinária capacidade de resiliência do ser humano, e a magnitude do seu abalo explica-se através da mais simples das descrições daquilo que se estava a passar: uma reunião dos Trovante. Os Trovante, para quem não se lembra, foi uma banda composta, entre outros, pelo Luís Represas e pelo João Gil, cujo único objectivo foi o de tranquilizar as gerações futuras pois não, não, os anos 80 não foram assim tão bons. Para compor o espectáculo e homenagear os artistas, a organização tratou de reunir o público dos Trovante, ou aquela parte do público dos Trovante que estoicamente sobreviveu aos Trovante.
Já hoje, apanhei aqui na televisão o Carlos a tocar com os Fonzie: o Carlos é uma pessoa que já emprestou a sua simpatia a um concerto da banda em que eu participo e cujo trabalho ainda hoje é lembrado com saudade. O Carlos, para quem não sabe, é o baixista dos Fonzie, uma banda que vende no Japão e assim, que o festival-RFM não merece (não sou fã, but than again, também não sou japonês.) Felizmente, acabei de confirmar que os Fonzie não estavam programados para participar no festival-RFM e que só lá foram porque uma banda de quem eu nunca ouvi falar e que certamente é muito pior do que a banda onde o Carlos toca baixo desistiu. O público, esse, era todo constituído por pessoas legalmente impedidas de comprar bebidas alcoólicas. O Carlos, esse, é um dos gajos mais porreiros que já conheci e genuinamente uma óptima pessoa.
Por fim, essa média-empresa chamada Xutos-e-Pontapés. Os Xutos-e-Pontapés foram uma banda particularmente importante no panorama do rock português dos anos 80 mas calhou que o sucesso e o dinheiro e a passagem do tempo os transformasse numa versão franchisada deles próprios. Nos dias que correm, não passam de um longo bocejo que o público da RFM toma por rebelde, mimetizando aquela cruz com os braços enquanto confirma uma reunião de departamento pelo BlackBerry. Como bem observou a minha mulher, a partir de uma certa idade começa a ter graça (os Rolling Stones, AC/DC), mas os Xutos ainda não estão lá; os Xutos estão naquela idade em que já não é credível que aquelas pessoas têm mesmo vontade de se vestir com picos na cintura e lenços no pescoço mas que apesar disso se vestem com picos na cintura e lenços no pescoço porque isso continua a render um milhão de euros anuais, embora não estejam ainda preparados para serem vistos como o circus act em que se tornou o Mick Jagger, por exemplo. Deu-me vontade de voltar aos anos 80 - sim, mesmo considerando os Trovante - só para ver como isto era a sério, como isto era antes das guitarras acústicas e das aplicações financeiras.
Parece que o bilhete, para cada dia, custa 58 euros, o que, dados os milhares de participantes no evento, reforça a minha sensação de que o mundo é um sítio muito hostil.