sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
Bode expiatório
Pingo amargo
«A firma Jerónimo Martins (mercearias finas) merece todo o respeito e consideração. Primeiro, porque antigamente comprou azeite a Herculano. Segundo, porque ajuda hoje a divulgar o interessantíssimo pensamento de António Barreto, que por enquanto não vende azeite. Mas, de repente, Portugal inteiro resolveu vociferar contra a Jerónimo Martins. O Parlamento, a televisão e os jornais, já para não falar de um ou outro "indignado" em transe, berram a sua justiceira fúria. E por que razão? Porque a Jerónimo Martins, muito lógica e prudentemente, resolveu transferir a sede social da sua holding para a Holanda, como, de resto, antes dela, 19 grupos dos vinte maiores do PSI-20: a PT, por exemplo, a Galp, a Mota-Engil e o BES, contra os quais não se ouviu à época qualquer murmúrio.
Agora, não. Esse acto medonho foi qualificado de ilegítimo, imoral, intolerável e até, algumas vezes, de traição à pátria. António Capucho, um homem normalmente tranquilo, apelou mesmo ao boicote do Pingo Doce e a esquerda, com a sua irreprimível tendência para o suicídio, vai propor uma lei que impeça no futuro abusos do género. Escusado será dizer (ou repetir) que a operação da Jerónimo Martins é uma prática corrente e permitida em Portugal e na "Europa". E que, na Holanda, para onde se mudou, tem vantagens fiscais, crédito e previsibilidade que não tem em Portugal e não terá pelos tempos mais próximos. Nada disto importa a quem vivia do Estado e está neste aperto fundamentalmente preocupado com o buraco em que o Estado caiu e com o dinheiro que não recebe.
Claro que a polémica sobre a Jerónimo Martins provocou, como era inevitável, a costumada retórica sobre a diferença entre os "pequenos" que sofrem e os "grandes" que aproveitam, entre os que arranjam sempre maneira de fugir e os que nunca podem escapar à dureza das coisas. Muita gente citou a célebre frase do dr. Cavaco sobre as belezas da "equidade" e por um pouco não se voltou ainda às "200 famílias do dr. Cunhal". Não ocorreu a ninguém que (apesar do azeite de Herculano e do dr. Barreto) a Jerónimo Martins não é uma organização de beneficência e que o seu dever é fortalecer a sua posição e aumentar os seus lucros. Se ela falisse, ou enfraquecesse, haveria com certeza uma enorme choradeira e a "inteligência" indígena voltava a lamentar a falta de empresários. Como não faliu, serve por aí de bode expiatório.»
Vasco Pulido Valente, Público 06/01/2012 (via MacGuffin)