terça-feira, 17 de agosto de 2010
Luta entre iguais
Claro que gostava de viver numa sociedade que não via na tourada nada mais do que o espectáculo deplorável que é, mas é característica das tradições a sua capacidade para escapar à aplicação do bom senso e ao escrutínio de um juízo informado. Por isso, Portugal, um certo Portugal que as pessoas urbanas como eu esquecem facilmente ou nunca chegam a conhecer, ainda alimenta com paixão a indústria das chamadas corridas de toiros, porque é de uma indústria que se trata: dos honorários dos artistas às receitas das criações dos animais (touros e cavalos), há muito dinheiro envolvido. Não vejo, portanto, o fim das touradas a acontecer para breve, até porque reconheço que há aspectos desta indústria que importa preservar, sobretudo em tudo o que se relaciona com o cavalo (se nos conseguirmos abstrair dos ferros e do sangue percebemos que ali estão cavaleiros de talento invulgar). Mesmo a particularidade mais medieval da chamada tourada à portuguesa, que é a pega do touro por um conjunto de doidos a que chamamos de forcados, é capaz, com algum esforço, de me ensinar coisas positivas, como a coragem e o espírito de entre-ajuda, etc, sem ironia, juro, e não acho que o animal sofra demasiado por ter aquela gente toda à sua volta. Mas depois, vendo a festa pela televisão, vem um comentário, um pormenor quase insignificante que deita por terra qualquer hipótese de eu me tornar um, como dizem, aficionado, como quando ontem o locutor explicava que o touro tinha «investido com nobreza». A palavra «nobreza» é aqui a chave para a minha perplexidade, pois atribuir o conceito de nobreza a um animal revela a tão necessária antropomorfização do touro que justifica o conceito, de outro modo absurdo, de luta entre iguais, tão enaltecido por quem é um apaixonado das lides. E eu não sou capaz de impulsos antropomórficos sobre uma vaca assustada, nem o meu sarcasmo chega tão longe ao ponto de bestializar o toureiro, que seria o caminho alternativo para o encontro dos pólos.