Isabel Jonet foi à SIC-Notícias participar num debate com Manuela Ferreira Leite e Rui Vilar. Logo aqui percebemos que algo não está bem. O tema, julgo, seria tão difuso como «a crise e os portugueses», como bem gostam as televisões portuguesas, dando espaço para que os intervenientes falassem sobre o que bem lhes apetecesse. Foi neste espírito que Isabel Jonet produziu umas declarações que fez as delícias das «redes sociais», e que, resumindo, era uma crítica aos hábitos de consumo dos portugueses, sobretudo dos portugueses que não podem dar-se ao luxo de ter hábitos de consumo desregrados. Como Isabel Jonet não é uma oradora talentosa nem tem um discurso cívico consistente, a coisa descambou para um conjunto de banalidades moralistas, pensava eu que inócuas, como por exemplo a condenação de idas a «concertos rock» e o facto de os seus filhos lavarem os dentes com a água a correr (bem como alguma coisa sobre Nestum - trazida ao debate por Ana Lourenço - que eu não percebi). Ora, eu ouvi isto todos os dias da minha educação: são coisas que qualquer pai (e avó) competente repete aos seus filhos. São ilustrações simplistas de uma hierarquia de prioridades saudável. São, também, parte da narrativa católica, da narrativa católica conforme passada às crianças. Foi estranho ouvir aquilo de alguém que falava para adultos, mas não mais do que isso: estranho. E devo dizer que, no essencial, mesmo traduzindo para uma linguagem mais consequente as ideias que Isabel Jonet estava a transmitir, estou absolutamente de acordo: os portugueses - nós - habituaram-se nos últimos 20 anos a viver com défices orçamentais constantemente deficitários e isso levou à instalação de hábitos de consumo insustentáveis.
O que se passou a seguir é para mim inexplicável. Caiu o Carmo e a Trindade sobre Isabel Jonet, e os acéfalos do costume lançaram-se em campanhas virtuais de «boicote» ao Banco Alimentar. Sim, porque Isabel Jonet é a presidente de uma das instituições que mais tem feito pelo auxílio dos pobres. Chama-se a isto «caridade», uma palavra que a esquerda odeia porque acha que quem a pratica pretende manter os seus beneficiários na pobreza, enquanto massaja o seu ego e o seu currículo cristão. E, claro está, não tardou muito que Isabel Jonet fosse apelidade de «salazarenta». Obviamente que este tipo de «debate», chamemos-lhe assim, não mereceria qualquer tipo de alimento numa situação normal - aliás, como nunca mereceu durante todos estes anos que Isabel Jonet tem à frente do Banco Alimentar, com condecorações à mistura e tudo - mas nós não estamos numa situação normal. O pecado de Isabel Jonet é a sua dicção, digamos, a maneira como mexe as mãos e pisca os olhos: é a sua condição social de «privilegiada», como agora se diz, o que, segundo a acefalia reinante, a desqualifica para qualquer intervenção pública. Mesmo sendo Isabel Jonet uma pessoa com um currículo a todos os títulos inatacável no trabalho de campo de combate à pobreza, qualquer consideração que faça sobre os mais «desfavorecidos» será considerado um «insulto», à imagem daquilo que se passou com Alexandre Soares dos Santos, por exemplo (já agora, como está a correr esse boicote ao Pingo Doce?) O dado preocupante nesta história é este (não é o «boicote» ao Banco Alimentar, que será feito por catorze pessoas com contas Twitter): a radicalização das várias sensibilidades sociais e políticas que conduzirão, tragicamente, a uma situação onde será impossível qualquer tipo de consenso sobre aquilo que o país tem de fazer.