O meu filho mais velho foi à natação. Ou melhor, levei o meu filho mais velho à natação. Parece que estou a dizer o mesmo, mas a segunda frase revela um pormenor importante: eu fui junto. Tudo começou porque a mãe do meu filho mais velho - que é a mesma mãe do meu filho mais novo, não sei onde é que vocês foram buscar essa ideia - decidiu, e bem (como sempre), que estava na altura do nosso filho mais velho ir para «a natação». Agendou-se, por isso, «o teste», e perguntou-se à criança quem ela queria que a acompanhasse. Deu asneira, escolheu-me a mim. Perguntou-se (perguntei) novamente no dia seguinte, mas a criança é teimosa, como são todas as crianças (a «teimosia» das crianças não é mais do que a nossa falta de disponibilidade para aceitar o facto de que elas têm opiniões e memória). Elas têm, azar o meu, piscina comigo. Vejam bem, eu gosto de piscinas, gosto de nadar, gosto tanto de água que até gosto daquelas piscinas ao ar livre que a chuva e a sarjeta entupida criam no asfalto irregular. Mas a «natação» junta à «piscina» um dado que já não me agrada tanto: outras pessoas. E a «natação para bebés» faz o pleno: junta outras pessoas (onde «pessoa» significa, e bem, um adulto) a outros bebés. Se há coisa que aprendi com a experiência da paternidade é que não gosto de crianças à excepção das minhas. Isto é, gosto delas, acho-as ternurentas, mas é rara a experiência da minha vida que não seria melhorada pela ausência dos filhos dos outros (é por isso, por exemplo, que estranho a baixíssima incidência de canonizações de educadoras de infância). Sou uma má pessoa, mas ao menos já não sou uma criança. Mas como a minha mulher está contratualmente habilitada a mandar em mim, vesti o fato de pai extremoso (um fato que me cai bem, ao contrário de outras peças de, chamemos-lhe assim, «roupa», como veremos mais à frente) e fui. Chegado o dia e o meu filho mais velho estava entusiasmado, a minha mulher estava entusiasmada, e o meu filho mais novo estava entusiasmado (apesar de ninguém lhe ter explicado nada): três em quatro não é nada mau. Eu estava receoso. Sabia, porque pesquisei na internet, que não é socialmente aceitável uma pessoa passear no espaço público de touca e toalha ao ombro, e por isso protocolo obriga a uma passagem pelo balneário. Todos vocês há passaram por balneários, e estou certo que desse lado já se está a gerar alguma empatia. Ora, o último balneário que eu frequentei vem de uma altura da minha vida e da vida do país que permitiu que eu gastasse 10% do meu salário numa mensalidade de um ginásio; aqueles balneários eram limpíssimos, eu tinha nojo de chegar a casa quando vinha do ginásio. E a hora a que eu os frequentava - praticamente de madrugada - significava que eu estava lá praticamente sozinho. Publicidade altamente enganosa para quem se viu abruptamente num balneário de «natação para crianças» num sábado de manhã. Não só o espaço obrigava a negociações permanentes entre os utentes, como os utentes incluíam os filhos dos utentes, à taxa altíssima de 1 para 1. Que não haja dúvidas: o inferno está cheio de estranhos em trajes menores. Fingi estar de acordo com aquilo tudo e preparei-nos para o teste, ignorando, por ora, a lista de material necessário para as aulas de natação. Tínhamos touca (tinha o meu filho, porque esquecera-me da minha em casa), chinelos, toalha e calção de banho. Eu sabia que os nossos calções de banho não correspondiam aos critérios publicados no regulamento da piscina, mas queria acreditar que haveria da parte das entidades fiscalizadoras uma interpretação de sentido lato daquilo que é um calção de banho «justo ao corpo e sem bolsos», mas vim a saber que não e que aquela expressão não passa de um eufemismo. Já no interior da piscina, o nadador salva-vidas aproximou-se de nós e disse aquilo que seria repetido por outra pessoa no final do teste, não fosse ter ficado mal explicado: os calções de banho («do menino também») têm de ser justos ao corpo («ao meu corpo, querem mesmo ver isso?», perguntei vigorosa mas mentalmente) e sem bolsos, de licra. Disse que sim com a cabeça, mas que não com o coração, e prometi ser obediente no futuro. Posto isto, estava na hora do teste, que consistia na participação numa aula. Fomos apresentados à professora, e até àquele momento nunca me tinha passado pela cabeça que uma professora de «natação para bebés» tinha de ter exactamente a presença que aquela professora apresentava: uma presença absolutamente intimidatória de natureza militar. Sentem-se na borda da piscina; sentámo-nos. Rodem o corpo; rodámos. Entrem dentro de água; entrámos. Percebi uma coisa: ser criança é estar em permanente regime militar. O meu filho estava muito mais à vontade com aquelas ordens do que eu. Sobre mim tinha descido um pânico familiar, que recuperei dos meus tempos de escola, motivado pela hipótese de fazer alguma coisa de errado. E fiz. Às tantas, por exemplo, estava abraçado a uma bóia imitando as ordens daquela baronesa von Trapp de touca, só para me aperceber depois que aquele movimento era para ser seguido pela criança. Ela não se riu, o que revela que aquilo lhe deve acontecer frequentemente, ver pais transformados em crianças assustadas - este é, pelo menos, o meu ardente desejo. Mas, aos poucos, fui recuperando a clareza de raciocínio a tempo de perceber que o meu filho estava a cumprir tudo com distinção. Tão preocupado que estava com a minha própria figura que aquela prestação exemplar quase que me passava ao lado! Ah, o orgulho. Ele abraçou a bóia, atirou a bola, apanhou o disco, nadou de frente, nadou de costas, saltou três vezes para dentro de água. A mãe, do lado de fora, registava tudo em fotografias que, infelizmente, ainda estão por destruir, já que a minha massa corporal não é transparente e estraga todos os planos. No final, já de volta aos balneários, com aquela sensação de conforto dada pela ainda que ligeira familiarização a um sítio hostil, vesti o meu filho com um sentido de dever cumprido: ambos tínhamos passado no teste. A sensação de conforto durou pouco, até me aperceber de uma coisa: aquele ritual teria de ser repetido, e da próxima vez com recurso a inevitáveis cedências estéticas e civilizacionais impostas pelo regulamento do equipamento da piscina, e que partem de um princípio utópico: que todos nós temos o corpo do Michael Phelps. Restam, por isso, duas hipóteses: convencer o meu filho que a mãe dele está muito mais apta para a tarefa, ou matar toda a gente que, semanalmente, for testemunha deste infeliz sinais dos tempos.