terça-feira, 27 de dezembro de 2005
Cristo vivo
Não quis provar nada nem, acreditem, fazer nenhuma declaração. Quis apenas relacionar o Natal com a figura de Cristo. Uma relação perigosa nos dias que correm. Uma relação, pessoalmente, algo ténue (infeliz e imperdoavelmente). Ainda assim arrisquei e aqui coloquei uma imagem de Cristo (morto, sim) de que gosto muito. Teologicamente desfasado com o calendário, este quadro de Mantegna é no entanto exageradamente táctil. Apresenta-nos um corpo deitado, inerte. Um homem morto que é chorado por duas pessoas, um homem e uma mulher, que em nada se anunciam como Maria e S. João. A importância dada ao corpo é invocada pela perspectiva que, ao dificultar o trabalho da proporção na definição do corpo humano, prende-nos nos pormenores que nos surpreendem (e terão surpreendido muito mais em 1480). A invulgaridade desta pessoa é-nos sugerida pela sua boa forma física: em todos os aspectos é um corpo quase ideal que aqui vemos. Se excluíssemos as chagas e o contexto, veríamos uma imagem da finidade humana, da sua extrema e imprevisível fragilidade, da morte como fim natural de todos nós. Não é um velho ou um doente que morre mas um homem no auge da sua vida. E é ao acentuar os ossos e a carne de Cristo, bem como a relativa indiferença com que representa o choro de Maria e S. João, que Mantegna nos assola com o choque do real e retira Cristo da distância institucional que a sua condição muitas vezes cria. Esta dimensão irreal de Cristo é acentuada no Natal, onde o homem é passado a menino. O Natal celebra quase um acontecimento abstracto e utópico, um ideal de amor humano que encontra na criança a metáfora perfeita. Mas o Natal é o nascimento de um homem que, apesar de dividir todos os outros acerca da sua condição divina, mudou o mundo. Não sei se isso é o suficiente para o deificar, mas sei que é o suficiente para o recordar. Ano a ano, no Natal. E o resto é palha.