O novo casamento
Não sei se o meu currículo (quatro casamentos; dois com a mesma pessoa) me impede de escrever sobre essa venerável instituição, se ainda é venerável e, sobretudo, instituição, que, suponho, seguindo o admirável Zapatero e o amor nacional pelo "moderno", o PS pretende agora reformar. O casamento era, para o Estado, um compromisso legal e, para a Igreja, um sacramento. Criava deveres, como criava direitos. Mas, segundo Alberto Martins, parece que já não deve assentar na lei, seja ela qual for sempre coactiva. Deve assentar na consoladora liberdade do afecto. Ou, por outras palavras, deve passar de um contrato perpétuo a uma espécie de encontro temporário, logicamente revocável, se o afecto de qualquer das partes, por natureza etéreo e fugidio, deixar de existir.
O PS também pretende abolir a culpa do processo de divórcio, abolindo o divórcio litigioso. Para começar, porque a própria noção de culpa tresanda a cristianismo e à sua variante católica, tradicionalmente obcecada pelo pecado da carne e pela influência corruptora da mulher. E depois porque a consciência contemporânea se emancipou da culpa, quando não se trata de multiculturalismo ou feminismo, de pedofilia ou de ambiente, ou, pior do que isso, de um atentado cego e celerado contra o nosso divino corpo, como por exemplo fumar um cigarro. Aí o Estado não hesita em proibir e punir. Quanto ao resto, o Estado pretende, e muito bem, tornar fácil o prazer, que nos justifica e alimenta. A inconveniência de um cônjuge ou o estéril escrúpulo de o abandonar pode (vem nos livros) coibir esse prazer. Declarar o afecto caduco resolve o assunto.
Infelizmente, não ocorreu ao PS (como antes não tinha ocorrido ao Bloco) que o novo casamento, se merece a palavra, só beneficia a classe média próspera. E, dentro da classe média próspera, beneficia o homem mais do que a mulher, porque evidentemente o homem ganha em média mais do que a mulher. Quanto à multidão que sobra, e pela mesma razão, a vantagem do homem é arrasadora. Fora que o mercado de trabalho favorece o homem e desfavorece a mulher (invariavelmente a última contratada e a primeira despedida) e que a mulher fica em geral com os filhos, um encargo sem preço. Dito isto, falta esclarecer um mistério: para que serve agora o casamento de homossexuais?
Vasco Pulido Valente, hoje no Público