Chove. O que me dá a oportunidade de lembrar este texto do António Guerreiro, trazido pela Sara:
Há algo de anedótico nas palavras de
uma ministra da Agricultura que, confrontada com a situação de seca,
profere: “Esperemos que chova”. Neste desejo de conforto meteorológico
reconhecemos não a consciência do desastre, mas a expressão típica do
indivíduo urbano que vai passar o fim de semana fora e diz: “Esperemos
que não chova”; ou daquele que, rumo a uma estância de inverno, traduz
toda a sua expectativa hedonista num “esperemos que neve”. Nas palavras
da ministra, subentende-se ainda uma proximidade com a linguagem dos
boletins meteorológicos, os quais, tal como são difundidos nos media,
abdicaram de toda a neutralidade e são enunciados exclusivamente do
ponto de vista dos interesses e cálculos da vida urbana e dos lazeres
burgueses: um “belo dia” é sempre o dia de sol (mesmo num inverno em que
não houve um dia de chuva) e um “dia feio”, a requerer mil precauções e
muitos apelos da “proteção civil”, é invariavelmente um dia de chuva.
A
ciência meteorológica é assim traduzida em pura ideologia. Para um
homem do campo e um agricultor, que se estão nas tintas para os avisos
da “proteção civil” e que já perceberam que a catástrofe se anuncia,
pelo contrário, nas sorridentes confirmações diárias de “bom tempo”, o
“esperemos que chova” é uma prova de ignorância: a chuva é antecedida de
sinais que eles sabem decifrar e, além disso, é inadiável, não admite
espera. Na ausência desses sinais, ninguém espera que se dê o milagre da
chuva. Esta ideologia meteorológica ao serviço do lazer do homem urbano
é também uma manifestação da racionalidade técnica, que Spengler
caricaturava nestes termos: "o homem moderno não pode ver o curso de um
rio sem o transformar logo mentalmente em produtor de energia elétrica".
A distância que se criou em relação aos fenómenos naturais, como está
patente no analfabetismo urbano em relação à chuva, é uma tragédia.
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.2.2012