sábado, 24 de junho de 2006

Semântica

Numa loja de equipamento fotográfico pré-1985, o dono sexagenário conversa com dois clientes jovens, estando o mecânico septuagenário e eu próprio a assistir:

- Olhe, aquele tipo das máquinas, o senhor de cor, já cá passou e disse que lhe traz a máquina para a semana.
- Com certeza, obrigado.

Os dois clientes saem. Resto eu e o mecânico na loja. O mecânico, completamente indiferente à minha presença, solta para o dono:

- O que é que o preto queria?
- O preto? O preto queria... [e sem levantar os olhos relembra subtilmente o mecânico de que eu também ali estou] o senhor de cor? O senhor de cor queria (perdi a atenção neste momento).


Em Portugal as palavras vão-se revestindo de uma complexa teia de conotações, com que só mesmo nós, os portugueses, estamos preparados para saber lidar. Não se pode chamar «preto» a um preto, devemos antes chamar «pessoa de cor», «negro» ou «africano». É isto que a história recente nos legou, por mais absurdo que possa parecer. Claro que ninguém usa estas designações quando está entre amigos, sem que isso signifique alguma espécie de depreciação. Mas em público, ou apenas perante alguém com quem fazemos uma cerimónia mínima, já parece mal dizer «preto», como se isso, por si só, fosse um acto discriminatório. Parece-me no entanto o contrário: o facto de termos pudor em utilizar o adjectivo «preto» para fazer referência à cor de pele de uma pessoa constitui, isso sim, uma condescendência racista de origem colonial.