terça-feira, 1 de junho de 2010
Friendly fire
Hoje mesmo, na actual composição parlamentar, não será difícil encontrar uma maioria para apoiar coisas abstrusas, como a proibição de touradas ou rojões, imposição da ordenação sacerdotal de mulheres ou a obrigatoriedade de purificadores atmosféricos.
O truque retórico exemplificado nesta frase é evidente para todos os leitores avisados: junta-se no mesmo raciocínio realidades distintas com o propósito de iludir o leitor sobre os méritos de cada uma delas. Neste caso, com vemos, o objectivo é o de fazer equiparar o grau de disparate de duas ideias válidas (a proibição das touradas e a ordenação sacerdotal das mulheres) ao de duas ideias efectivamente disparatadas (a «proibição de rojões» e a obrigatoriedade de «purificadores atmosféricos»). Passemos por agora por cima do incoveniente de as duas últimas não serem acções passíveis de proibição ou obrigatoridade (não é possível proibir um alimento nem obrigar a um objecto, per se, será necessário explicitar a acção concreta que se visa proibir) como o são as duas primeiras, porque o interesse na exposição desta parcela de texto (que, obviamente, queremos que seja tomada como metonímia) não reside nos aspectos formais da sua execução (a falta de domínio retórico é um dado bastante evidente no autor em causa) mas nas ideias que ele revela.
Estamos perante um autor que tece um juízo moral sobre a sociedade que o rodeia concluindo, como é apanágio de todos aqueles que ao longo da história tiraram uns minutos para tecer juízos morais sobre as sociedades que os rodeavam, isto é deboche, pá. Para tal, o autor socorre-se da enumeração de variados factos - ou juízos seus apresentados como factos - que suportam a tese; neste caso, os factos são «o aborto», «o divórcio», o casamento gay, a (está lá, vão consultar, preguiçosos) educação sexual (ora que grande deboche que é a educação sexual, pá, ao que isto chegou), sendo a tese o espantoso embora infelizmente inexistente «totalitarismo do orgasmo», que o autor, pensamos que lamentavelmente para tudo aquilo que revela sobre a sua vida privada, condena.
O raciocínio, surpreendentemente, não é falacioso: o «aborto», «o divórcio», o casamento gay e a educação sexual são acontecimentos que visam lidar com realidades que advêm, grosso modo, do acto sexual: sem acto sexual não haveria abortos (porque não existiriam gravidezes indesejadas; caramba, não existiriam gravidezes), sem acto sexual não existiriam divórcios (reconheçamos: se queremos dar o fora é porque o conjuge já não dá ponta), sem acto sexual não haveria casamento gay (poderíamos ser só bons amigos), sem acto sexual não haveria necessidade de educação sexual (talvez remetida para a Academia dos teóricos). Ora, o acto sexual só existe porque estão ali duas pessoas à procura do orgasmo (mesmo aquelas pessoas que o sabem difícil não deitam a toalha ao chão), e nesse sentido estamos perante aquilo a que o autor apelidou de «totalitarismo do orgasmo». O problema é que, ao contrário do que costuma ser corrente nestas coisas dos totalitarismos, o orgasmo é bom. O orgasmo, atrevemo-nos, é óptimo. Pelo que se levanta a dúvida sobre as reais intenções do autor na sua denúncia, já que parece inverosímil o objectivo explícito.
Que não dura muito: com a denúncia do «totalitarismo do orgasmo», é evidente que o autor visa condenar o comportamento de uma geração que já não é a sua através do pararelismo com o comportamento da sua geração, atribuindo, não estranhamente, virtudes ao comportamento da última e vícios ao comportamento da primeira. Há quem lhe chame «crise da meia-idade», mas o leitor fará o favor de lhe chamar o que por bem entender. Ora, de facto, a geração do autor não cedia ao «totalitarismo do orgasmo», mas como veremos essa estoicidade não se devia a nenhuma virtude assinalável mas antes a uma conjuntura favorável: não havia aborto (legal), não havia divórcios (pulava-se a cerca mas voltava-se ao final do dia para jantar), não havia casamento gay (os gays casavam-se mas com pessoas do outro sexo), não havia educação sexual (a matéria era toda dada nesse curso intensivo conhecido por «noite de núpcias»).
Posto isto, não admira que o autor sinta, adivinhamos, uma certa inveja da geração que lhe sucedeu e que a queira atacar. Mas ao tentar fazê-lo com armas do calibre da frase citada no início deste post, incorre numa traição das suas tropas ao denunciar o alcance limitado das suas capacidades. Senão vejamos: o carácter extremamente rudimentar da trapaça retórica ensaiada nas comparações touradas / rojões e ordenação de mulheres / purificadores atmosféricos, levanta o véu sobre quem é o público alvo que o autor tem por intenção tocar. Não é crível que o autor esteja interessado em cativar aquelas pessoas que pensam de modo diferente da sua, uma vez que as pessoas que pensam de modo diferente da do autor, ou seja, as pessoas que são a favor da proibição das touradas ou da ordenação sacerdotal das mulheres costumam ser pessoas intelectualmente devidamente estimuladas (e bem parecidas) que não são sensíveis ao argumento que visa equiparar moralmente a ideia de considerar as mulheres igualmente capazes de liderar uma comunidade com a ideia de proibir «purificadores atmosféricos» (mais uma vez pedimos desculpa ao leitor por este facto, mas somos obrigados a citar correctamente a fonte: sabemos que proibir um objecto é uma ideia impossível, mas admitimos que a proibição em causa diz respeito a uma acção levada a cabo com esse objecto, como seja a sua produção ou utilização).
Assim, somos forçados a deduzir que o público alvo do autor são as pessoas que pensam do mesmo modo do que ele - isto é, pessoas que não concordam com a proibição da mutilição de mamíferos como espectáculo e que consideram essa ideia moralmente equiparável à proibição de rojões (mais uma vez, etc etc, consideremos que a «proibição de rojões» diz respeito à proibição da utilização de «rojões» em receitas de iogurtes para crianças, ideia, aliás, que merece todo o nosso respeito), expondo, pensamos que cruelmente, todo o gabarito intelectual que caracteriza o conjunto de pessoas partidários do autor nestas causas e expondo também, tristemente, a indisponibilidade para o diálogo do autor e a sua decisão de permanecer na caverna a contar anedotas sobre as sombras.
É isto que choca no texto citado: o facto de ser evidentemente uma facada nas costas na própria equipa: somos sempre particularmente sensíveis à canalhice. Resta saber se isto foi involuntário (a arma disparou para o sítio errado) ou voluntário (hipótese académica que julgamos confere ao autor um interesse adicional). Estamos cá para os próximos episódios.