Dizia-se que Lisboa era maravilhosa em Agosto. Menos de metade dos carros, das pessoas, do barulho, dos engarrafamentos. Que se atravessava a cidade muito rapidamente, que a noite caía tarde e quente sobre as ruas desertas, cheias de espaço para estacionar, que por dentro das janelas abertas havia ruídos familiares de refeições e toalhas de praia secando nas sacadas.
Que se ia ao cinema de um momento para o outro, sem pensar nos bilhetes, ou então a Cascais, pela marginal, procurar uma esplanada calma, abrigada do vento.
Que de manhã quem trabalhava em Lisboa não chegava mais tarde mas muito mais depressa e descontraído, que os almoços se prolongavam sem stress e que o tempo, como o sol, parecia duplicar-se e estar sempre presente.
Também ele ficara em Lisboa aquele Verão e pôde constatar isso e muito mais; que os telefones quase nuncam tocavam, por exemplo, aumentando-lhe a concentração nas tarefas que se propunha.
Podia dar-se ao luxo de escolher um lugar à sombra quando chegava ao escritório ou deslocar-se para o outro lado da cidade no tempo de dois cigarros. As poucas pessoas que sabia estarem em Lisboa encontrava-as no momento seguinte e lia jornais ao almoço, preguiçosamente prolongado até às três e meia.
Mas ele não confundia as coisas. Sabia que Lisboa (e talvez o Porto, segundo ouvira dizer) era assim, podia viver-se assim, naquele único mês do ano, apenas por ser a cidade grande, difícil e caótica que os outros meses revelavam.
Sabia que as coisas só adquirem força quando conhecemos bbem o seu contrário e que nenhuma cidade enorme, tão diversa e capaz de propôr alternativas, poderia sobreviver com a população que o auge do Verão deixara tranquila a guardá-la.
O homem que gostava de cidades, porque gostava de cidades, sabia que a quantidade de cinemas desocupados que Agosto lhe oferecia só podia existir porque justificada durante o resto do ano. Que uma cidade de grandes avenidas sem carros, não as teria se não tivesse necessidade delas nos outros momentos da vida. Que o prazer de se passear por uma variedade de lojas esquisitas só lhe era dado porque habitava uma verdadeira cidade momentaneamente vazia.
Ao contrário de alguns amigos, que também tinham ficado, e que comentavam, bebendo whisky com gelo, que adorariam que Lisboa fosse sempre assim, ele arrepiava-se e forçava-se por demonstrar que se Lisboa fosse sempre assim, não seria Lisboa; não era uma cidade, não era aquele conjunto de museus e restaurantes disponíveis, não seriam mesmo aqueles amigos particularmente escolhidos e com uma história tão própria, não era o território grande e deserto atravessado por algus figurantes, nunca seria o enorme mercado que em defeso se esforçava simpático por servir os únicos lisboetas, mas uma pequena cidade de província, talvez com charme, também, mas com outros valores, outras limitações, outras propostas radicalmente diferentes.
E era aí que residia finalmente o equívoco; não se trataria de valorizar tipos de vida, nem de criar falsos valores ou viciados desejos: Lisboa ou Porto eram cidades com durezas próprias, oportunidades próprias, força própria; mas Portalegre ou Covilhã ou Chaves deveriam ser entendidas no muito diferente que tinham e que a Lisboa e Porto já só era palidamente permitido a meio de Agosto.
«Dizia-se que Lisboa era maravilhosa em Agosto», O Homem que Gostava de Cidades, Manuel Graça Dias, ed. Relógio de Água, 2001