Não se trata de uma mostra monográfica mas sim de uma escolha de trabalhos emblemáticos da agenda formal e conceptual dos arquitectos, pontos de partida e chegada da sua prática.
Diogo Seixas Lopes
O visitante mais distraído sairá certamente baralhado da exposição Aires Mateus: arquitectura. Ou, na melhor das hipóteses, ficará com a nítida sensação que entre esta arquitectura que se expõe nas salas de exposições e o seu mundo, pouco há de comum. A explicação é simples. Apesar do nome, traiçoeiro, esta não é uma exposição de arquitectura.
O que é apresentado, de uma forma magnífica através de um espaço expositório desenhado pelos próprios que encerra em si mesmo alguns dos conceitos expostos, não é arquitectura mas um conjunto, extremamente limitado, de ideias sobre o espaço. Dir-se-ia que estamos perante um período artístico de uma dupla de autores (embora, e inevitavelmente, seja o nome de Manuel Aires Mateus que ocorre mais frequentemente), um conjunto de trabalhos quase monotemáticos. Mas não é tanto na selecção dos trabalhos que a recusa em mostrar arquitectura se faz (ainda que também), mas mais no modo como se decide seduzir o visitante: muito poucas fotografias (e quando elas aparecem não tencionam contar nenhuma história, mas antes ficar refém destes preconceitos), desenhos sem legendas nem informação (desenhos que pela sua coerência gráfica e poder de síntese formam um conjunto de obras em si mesmo) e, os actores principais da mostra, maquetes-esculturas, lisas, brancas, quase monolíticas (com algumas excepções, como a extraordinária maquete em corte do Centro Cultural de Sines).
Os irmãos Aires Mateus têm uma obsessão. Não é preciso saber qual é. À segunda obra que observamos ficamos com essa sensação. Uma obsessão, em primeiro lugar, em construir um percurso coerente, demasiado coerente. A arquitectura (pelo menos alguma dela, esta que é escolhida para expor) nas mão de Manuel e Francisco Aires Mateus transforma-se rapidamente num objecto fechado, numa abstracção poderosa de tudo aquilo que são os elementos exteriores à própria construção, a começar pelas pessoas. Tudo em nome do superior interesse da arte, do conceito, do tal espaço conceptual puro, intocado. Publicado.
A exposição divide-se, sabiamente, em dois capítulos: casas e obras públicas. E é na primeira parte, dedicada à encomenda unipessoal privada, que a instrumentalização (aparente, não sabemos, nem interessa saber, se o é de facto) do outro é mais óbvia. O cliente é visto como uma oportunidade e a encomenda como mais um opus desta carreira obsessiva. E que palavras poderíamos escolher para ilustrar esta obsessão? Uma série de binómios, sendo que o que caracteriza esta arquitectura é o que fica entre eles: cheio-vazio, positivo-negativo, forma-fundo, espaço-matéria, etc. É uma arquitectura que parece ser mais escavada do que desenhada, o que é transmitido pela definição claríssima, em quase todos os projectos, de um volume simples de origem, um paralelipípedo cheio e pesado, ao qual são retirados bocados, sempre de planta rectangular. Claro que há objectos que saem desta lógica, como a Casa em Azeitão, mas nessas a diferença entre estupefacção e o deleite espacial, e a adequação do trabalho à função que lhe está na origem ainda é maior. Sempre quis vez a Casa de Azeitão habitada, por uma família, com loiça suja na cozinha, cadeiras feias na sala, e um sistema de home-cinema que leva fios de um lado para o outro.
Quanto às obras públicas pego num exemplo para seguir do particular para o geral. Exemplo que demonstra claramente que esta não é uma exposição de arquitectura, mas mais uma exposição (e não consigo resistir ao apelido) mediática de um conjunto, insisto, limitado de conceitos arquitectónicos.
Visitei este verão o Centro Cultural de Sines. Sines é uma cidade que tem resistido muito bem ao desenvolvimento industrial que lhe é inerente. Resistido talvez não seja a melhor palavra. O que Sines tem feito é lidado muito bem com a condição simultânea de vila histórica e de cidade portuária estratégica. Ou seja, e trocando por miúdos, o centro histórico de Sines vale a pena. É neste centro histórico que se implanta a obra de Manuel e Francisco Aires Mateus. Mais uma vez é o noção de corpo estranho que salta primeiramente à vista. O Centro Cultural é um objecto, um objecto quase fechado, de linguagem autónoma, que agita Sines (ouvi duas velhotas comentar, e dizia a primeira velhota para a segunda velhota, «eu acho bonito, percebe, é muito bonito e moderno, mas acho que o deveriam ter posto noutro sítio, mais moderno, e não aqui, no centro histórico). No entanto, o maior gesto do projecto é, a meu ver, o atravessamento pedonal que permite, passagem pública que cose muito bem o novo edifício com a envolvente pré-existente. Esta é a glória do gesto arquitectónico, e o modo natural como esse atravessamento é feito (nem por um segundo duvidamos que aquele é um espaço puramente público) é o que justifica tudo o resto. O conceito, a estrutura, a linguagem: tudo se torna secundário perante a implantação urbana da coisa. Ora, na exposição decide-se não fazer referência a esta característica, fundamental, do projecto. Não é apresentado nenhum desenho de conjunto, não se tenta explicar esta envolvente, não há interesse nenhum em mostar a arquitectura: apenas se glorifica o conceito formal. Sines, ou Sagres, ou Sacavém: não interessa.
O que justifica esta exposição é a qualidade destes conceitos, desta obessão. É impossível ficar indiferente a força gráfica e formal desde conjunto de obras. Manuel e Francisco Aires Mateus apresentam uma obra do seu tempo, o tempo da rápida comunicação das coisas. Um conceito, uma ideia, um gesto. Ponto final, está feita a obra. Nada pode ser supérfluo, nada pode ser redundante, nada pode ser desperdiçado, nada pode ser marginal. O que resulta nos tais objectos fechados, puros, intocados, museológicos. Esta escolha tão radical é simultanemente a maior força e a maior fragilidade da obra arquitectónica da dupla Aires Mateus.