sábado, 12 de agosto de 2006
Livre arbítrio
Conheço pessoas que acreditam em Deus. Não sei se diria «acreditam», talvez seja mais algo do campo do «saber», e não do «acreditar». São pessoas que sabem que Deus existe e, mais do que isso, sabem que Deus as ama. São profundamente religiosas, e de beatice não têm nada. Não rezam para que lhes passe a constipação, não rezam para serem aumentadas, não condenam os pecadores, não são moralistas. Mas evangelizam, através daquilo que são. Só posso imaginar que seja tranquilizador conhecer Deus, e saber que ele nos é exterior, uma entidade autónoma que não depende de nós para existir. Não sou assim, apesar de ser cristão. Deus é para mim algo que só faz sentido (e tem de fazer sentido, o que me separa desde logo dos meus amigos crentes) se for incompreensível. Um mistério, usando terminologia bastante canónica. Se eu acredito que há algo que não se pode reduzir a electrões e protões, só me consola a ideia de que me será sempre negada a hipótese de a conhecer. Não desisto de tentar, e é a isso que chamo teologia. E é por isso que a teologia me interessa tanto, porque se apresenta como a tentativa de atingir o inatingível. Algo que nos faz, ainda que apenas por brevíssimos momentos, acreditar que estamos perto de compreender Deus. Uma desesperada tentatica de superarmos a nossa escala. Não sei se Deus existe, e não me inquieta a hipótese da resposta ser negativa. É essa dúvida que me faz correr. É no constante confronto entre o absoluto abstracto que é a perfeição divina e a imperfeição exasperante da espécie humana que encontro as minhas bases para entender a vida de Cristo, e fazer dela uma religião. Entendo que para acreditarmos em Deus teremos que acreditar na infinidade da dúvida, na permanente existência do conflito humano com o desejo de salvação divina, até ao fim dos tempos. O que nos impede de tornar esta questão em algo puramente académico são os relatos dos evangelistas sobre o homem que não conseguimos censurar. Uma vez a Clara Ferreira Alves, a propósito de uma edição comentada da Bíblia (acho), disse que mais espantoso do que atribuirmos autoria divina àquele conjunto de livros, é imaginarmos que a Bíblia é puramente obra humana. Não podemos acreditar que o Homem é capaz de criar aquela história. Acho a ideia bonita, mas não concordo. Não há nada mais espantoso do que equacionar a existência de Deus. É a dúvida última. Isto não acaba com a nossa morte. O paraíso não é um conceito idílico. O livre arbítrio, esse, é o penoso caminho que julgamos ser do nosso interesse. O preço a pagar.