quinta-feira, 16 de julho de 2009

O segundo avião (uma adúltera em Bagdade)



Agora que A Crise substituiu O Terrorismo como a grande paranóia mundial - apesar de já estar a ser ameaçada pela Gripe, numa sucessão de movimentos que se pode definir como uma pandemia de paranóias - a leitura dos ensaios que Martin Amis escreveu sobre o «11 de Setembro», e que estão reunidos em The Second Plane, tem o mérito de nos fazer esquecer da Crise (ou da Gripe, escolha a sua) e mergulhar no mundo da ameaça islamita. A primeira conclusão é a de as paranóias são exclusivistas, no sentido em que não admitem a partilha do espaço público: o mundo que Amis vai interpretando ao longo das páginas de The Second Plane já parece surpreendentemente distante, e o facto de não ter havido nenhum acontecimento no campo do Terrorismo que justifique a sua saída de cena dos holofotes do pânico mundial (bem pelo contrário) leva-nos a concluir que esse mérito é devido à entrada em cena de outro protagonista, A Crise (ou A Gripe, escolha a sua).

Os ensaios de Amis não foram simpáticos para Amis. Entre 2001 e 2007, cada vez que a prosa de Amis sobre o «11 de Setembro» saía à rua para apanhar ar era apedrejada tal qual uma adúltera em Bagdade. Já está suficientemente documentado o facto de o 11 de Setembro ter feito muitos estragos à esquerda (à esquerda sobretudo anglo-saxónica, porque à esquerda portuguesa, por exemplo, serviu como tonificante) e Amis terá sofrido um sobressalto ideológico semelhante àquele que sofreu Cristopher Hitchens ao perceber que a sua posição no mundo pós-11 de Setembro era cada vez mais isolada (ou mal acompanhada). E que posição é essa? Depois do 11 de Setembro, o Ocidente perguntou-se: «o que fizémos nós para merecer isto?» A resposta de Amis é simples: nada. Nós (o «Ocidente») não fizemos absolutamente nada que justificasse o ataque terrorista de Nova Iorque. Reconhecer este dado é libertar o raciocínio do politicamente correcto que tem embrulhado a consciência ocidental nos últimos anos, que anda relativamente confusa (ver «Mário Soares»). Uma das razões pela qual a consciência ocidental tem andado confusa é o facto de haver dados traiçoeiros na equação, como por exemplo George W. Bush. George W. Bush foi o «atacado» no 11 de Setembro, e o facto de Bush ser vítima seja do que fôr predispõe o observador a olhar para o agressor com olhos compassivos (e os primeiros a fazê-lo foram os europeus). O próprio Martin Amis, depois de comparar o sentido religioso de Bush com o sentido religioso de Saddam (Saddam sai a ganhar - é menos religioso), comenta a chamada «texanização» da Casa Branca deste modo:

«And doesn’t Texas sometimes seems to resemble a country like Saudi Arabia, with its great heat, its oil wealth, its brimming houses of worship, and its weekly executions?»

A frase está em The Wrong War (título auto-explicativo), ensaio que poderia perfeitamente servir de isco a Mário Soares para que este lesse o resto do textos, e onde Amis coloca em evidência a tragédia que foi a infeliz coincidência de se ter George W. Bush na Casa Branca em Setembro de 2001. Coincidência? Sim. Como já foi dito, a clientela que procura «multiculturalismo» e «equivalências morais» na relação Ocidente - Islamitas (quero usar «islamismo» como tradução de «islamism», mas não sei se será inteiramente correcto) vem bater à porta errada. Amis é o homem da guerra contra o cliché e o cliché manda «compreender» e «dialogar» com Osama, coisa que Amis não está nem por um segundo interessado em fazer. Essa é a grande chave da posição ideológica (apesar de Amis detestar qualquer ideologia - diz-se apenas filiado no bom senso) de Amis: o corte no cordão umbilical que liga as coisas que acontecem no mundo com as ferramentas que temos disponíveis para avaliar as coisas que acontecem no mundo. Porque essas ferramentas estão obsoletas. Numa conferência no Institute of Contemporary Arts, Martin Amis dirigiu uma pergunta, julgava ele, simples à assistência: «Quem se considera moralmente superior aos Talibans, levante a mão.» Apenas um terço das mãos (um sexto, para sermos então mais precisos) se levantou, a medo. Os outros dois terços preferiram declarar que não se sentiam «moralmente superiores» aos Taliban provavelmente porque estão profundamente impregnados com a cultura «multicultural» que os proíbe de se sentirem moralmente superiores seja a quem for.

O objecto dos textos recolhidos em The Second Plane é o radicalismo muçulmano; não é, como foi para muitos, a reacção do ocidente ao radicalismo muçulmano. Após o 11 de Setembro, o Ocidente (ver «Mário Soares») caiu muito rapidamente na tentação de se olhar demasiado ao espelho, como uma menina bonita a quem o rapaz não deu atenção, à procura de respostas, fechando as janelas para melhor se concentrar na tarefa. Amis deita o espelho fora, abre todas as janelas de casa e instala-se na varanda com uns binóculos. As respostas estão todas lá fora e é lá para fora que se tem de olhar. A certa altura, Amis percebe que os binóculos não chegam e vai ao Médio-Oriente. Mas vai de calções e camisa aberta no peito, com duas loiras semi-nuas de cada lado pelo braço: sem medo de causar estragos. E ao fazê-lo descobre talvez a solução para o problema, que reside (como já todos percebemos) no carácter de excepção que o islamismo parece ter e que o besunta de óleo que impede que a história o agarre. Amis avança com uma explicação que parece eficaz: o islamismo (a filosofia radical muçulmana que faz do Islão não apenas uma religião mas um sistema político totalitário) tem semelhanças perturbadoras (ou, de outro ponto de vista, reconfortantes) com o nazismo ou o comunismo. Ninguém se lembra de perguntar quem foi o culpado do nazismo senão Hitler ou quem foi o culpado da revolução russa senão Lenine. Mas em relação ao radicalismo islamista parece que tem de haver algum culpado para além de Osama (e respectivos precedentes), o que torna a comparação pertinente. O discurso dos respectivos líderes são bastante semelhantes, e Amis elenca alguns pormenores:

«Of the many affinities that emerge, we may list, to begin with, some secondary characteristics. The exaltation of a godlike leader; the demand, not just for submission to the cause, but for utter transformation in its name; a self-pitying romanticism; a hatred of liberal society, individualism, and affluent inertia (or Komfortismus); an obsession with sacrifice and martyrdom; a morbid adolescent rebelliousness combined with a childish love of destruction; “agonism”, or the acceptance of permanent and unappeasable contention; the use and invocation of the very new and the very old; a mania for purification; and a ferocious anti-Semitism.»

A solução para Isto Tudo passa, segundo Martin Amis, por uma revolução interna no seio («seio», anotem esta palavra de modo a darem-me o devido crédito estilístico que será evidente daqui a precisamente 12 palavras) do Islão que terá forçosamente de ter um carácter democrático e feminino. A mulher será a resposta, e talvez seja por isso que o texto que Martin Amis assina hoje no Guardian sobre os eventos do Irão - e onde Amis recicla alguns parágrafos publicados em The Second Plane, João Pedro George tu põe-me os olhos nisto - dê especial ênfase à morte de Neda Soltan. Neda Soltan que era uma mulher bonita, como é demasiado frequente no Irão para que o país esteja sob um regime que promove o sentido de culpa sobre o corpo da mulher.