Acabo de ver, na Sic-Notícias, num programa intitulado «Tempo e Traço», que aborda os temas da arquitectura, paisagismo e design, uma curta entrevista a Júlio Machado Vaz. O professor falava da sua casa, a casa que construiu recentemente. Pelas primeiras imagens da obra percebi que se tratava de um óptimo projecto de arquitectura. A casa é um paralelipípedo sereníssimo, comprido, de betão à vista cinzento-chuva, implantado num terreno relativamente acidentado mas coberto por um manto verde de relva fresquíssima. O interior é directo e coerente com a austeridade delicada da imagem que se forma no exterior. O contraste entre este corpo racional e ortogonal com o manto ondulado vegetal é uma aposta ganha. Mas o que mais me espantou foram as palavras de Júlio Machado Vaz. Todo o processo que conduziu à construção da casa é interessantíssimo e serve de exemplo do processo arquitectónico que é muito frequente neste tipo de projecto. Digo isto porque estou desde há algum tempo para cá a tentar escrever um texto sobre a complexidade (e contradições) da relação entre cliente e arquitecto no que toca à construção da casa própria. O melhor mesmo é tentar reproduzir as declarações do professor, de memória, na primeira pessoa. Cá vai:
«Cresci a ouvir falar numa casa. Toda a minha família, o meu pai, os meus tios, os meus avós, falava constantemente de uma casa que eu nunca cheguei a conhecer. Uma casa carregada de histórias familiares. Essa casa foi vendida sem que eu chegasse a conhecê-la, o que eu achei uma obscenidade. Decidi então que um dia reconstruiria essa casa, a tal casa que eu nunca cheguei a conhecer, para poder voltar a criar uma referência familiar. Deu-se nessa altura o primeiro milagre: o meu filho mais velho escolheu arquitectura. Achei que estava tudo feito: eu tinha o dinhero, ele tinha o talento, e a casa construir-se-ia quase por geração espontânea. Foi-me apresentada a primeira ideia para a casa e eu tive um choque. A casa não era nada daquilo que eu tinha imaginado. Eu tinha uma casa velha de pedra para reconstruir e achei que era isso que ia fazer: uma casa de pedra, com uma varanda à volta, com os meus netos a brincar no jardim à frente. Quando vi aqueles desenhos achei que nunca iria ser capaz de habitar aquela casa. Ou a casa ou eu, um de nós, seria um extra-terrestre. Porque não quis desiludir o meu filho nem mostrar a minha total falta de cultura e de gosto, nada disse, e a casa seguiu e foi construída. Combinámos então vir cá passar o primeiro fim-de-semana. Eu vim cheio de dúvidas. Continuava a achar que não iria ser capaz de habitar aquela casa. Deu-se então o segundo milagre: nessa noite, quando me deitei pela primeira vez, senti-me como se tivesse vivido toda a vida naquela casa. E hoje vejo-a como algo que eu estou a deixar para o futuro, para os meus netos, os meus bisnetos. Uma casa que vai ter a sua própria história. E acho que isso é o mais importante.»
Apetece-me dizer que nem em todos os projectos se tem a sorte de ter como clientes os próprios pais e, mais ainda, um pai que, por respeito e consideração pelo filho, lhe dá carta branca para projectar. Apesar disso este é um óptimo exemplo daquilo que é a dificuldade, ou melhor, a diferença de sensibilidade e visão entre o arquitecto e o cliente, diferença essa que torna difícil a comunicação entre quem domina o ofício (a arquitectura) e quem tem um desejo muito forte de (re)construir uma casa pensado na (re)construção de memórias afectivas fortíssimas. Acredito que esta casa nova e estranha terá uma muito maior facilidade em ser palco de afectos e memórias do que uma preconceituosa casa de pedra com varanda à volta. Porque a casa é de hoje, com uma identidade própria e uma beleza que é sua.
Júlio Machado Vaz tem um blogue, o Murcon, que aproveito para juntar à lista de links. Aproveito também para lançar daqui um pedido ao professor para que, se possível, publique algumas fotografias da sua casa, para todos podermos partilhar desse seu «milagre».