sexta-feira, 4 de julho de 2008

Como fazer coisas com palavras

À saída ficámos a discutir se acabáramos de ver uma peça que só podia ter saído da cabeça de alguém «ligado às palavras» (como eu defendia) ou de alguém «ligado ao Direito» (como ela defendia). Eu não sabia que uma «performativa» podia ser tema de cadeira jurídica (como é), e fiquei curioso sobre se o Pedro Mexia (um homem ligado às palavras e - não há como evitá-lo, Pedro - ao Direito) o sabe, mas a verdade é que faz todo o sentido (se fazemos coisas com palavras é porque essas coisas têm consequências). Mas vamos à peça. Há dois momentos de grande inspiração que justificam o seu sucesso (como eu o classificaria) e nenhum deles se passa (passou) em cima do palco do S. Luiz: o primeiro foi ter percebido que era possível e até interessante adaptar uns textos sobre a filosofia da linguagem ao palco; o segundo foi ter percebido que a pessoa ideal para o interpretar era Ricardo Araújo Pereira. Porque a partir daqui tudo parece mais ou menos evidente e, portanto, pouco surpreendente, mas isso não nos pode fazer ignorar o facto de que estas decisões revelaram um notável faro para a coisa. Como fazer coisas com palavras é uma homenagem à linguagem e um convite à exploração de novas formas de olhar para as coisas comuns (para os leigo em filosofia da linguagem). Ou seja, e isto parece-me óbvio, algo de muito semelhante à fotografia: uma boa fotografia é sempre um objecto interpelativo mas incapaz de impedir que haja quem, cepticamente, a considere apenas uma imagem recolhida mecanicamente. Os cépticos, ou aqueles que não se deixaram influenciar pela performance de Araújo Pereira no palanque, dirão que Como fazer coisas com palavras é uma peça com um alcance e interesse limitados, que explora em demasia duas ou três curiosidades mais ou menos evidentes. E a verdade é que a adaptação para teatro das conferências de John Austin terá necessariamente de ter passado por uma enorme simplificação e purga dos textos originais, de modo a permitir uma comunicação eficaz em 70 minutos, dando especial ênfase à dimensão lúdica dos textos. É esta dimensão lúdica que se assume como a maior homenagem à linguagem: ao conseguir divertir uma plateia não iniciada com considerações sobre as palavras, os autores partilham o entusiasmo que lhes suscitam os textos originais e conseguem um efeito mais pedagógico do que aquele que certamente esperavam. O despertar da consciência adormecida pela repetição quotidiana da linguagem corrente para o enorme potencial social que essas palavras carregam é a grande aprendizagem que se faz na plateia do S. Luiz. Ricardo Araújo Pereira sua - literalmente - para o conseguir fazer, e mesmo tornadas evidentes as suas fragilidades como actor (não consegue evitar recorrer a tiques já construídos para outras personagens suas) o objectivo da palestra é plenamente atingido: o espectador sai da sala com maior medo - vá lá, receio - de usar certas palavras em certos contextos de certas maneiras. Sai mais desperto para o discurso e com maior respeito pela linguagem, e não imagino melhor resultado que poderia esperar Pedro Mexia quando convidou Ricardo Araújo Pereira a arriscar parte considerável da sua reputação por um conjunto de conferências sobre filosofia da linguagem mais ou menos obscuras proferidas há mais de 60 anos. A encenação segue uma linha minimal e é bem conseguida, ganhando maior força quando acentua os momentos nonsense, que acontecem quando a representação se antecipa às palavras, criando uma tensão dramática que se acumula até ao momento em que o boneco passa a fazer sentido pelas palavras. Estes momentos são tão bem conseguidos que sugerem uma outra encenação mais interventiva, onde o respeito pelo texto não fosse necessariamente tão evidente. Mas isso poderá ficar para outra altura (chamem os tipos da BBC que está aqui uma óptima série de TV).