sábado, 12 de julho de 2008

Spoiler

Um padrasto decente para o Gongas

Três gerações de mulheres combatem a solidão, os brandos costumes e a língua portuguesa

A vida não é fácil para as mulheres de Português Suave. Atormentadas à partida pelos habituais albatrozes de serviço (os «homens», a prosa), elas têm ainda de negociar os seguintes obstáculos: desgostos amorosos, tragédias familiares, mentalidades conservadoras, um país estagnado, uma sintaxe catatónica, um enredo à beira do colapso e a distinta possibilidade de o leitor perder os sentidos a qualquer momento, deixando-as a lutar sozinhas.
Grande parte da história é narrada por Leonor, que se encontra num ponto de viragem: «Cheguei a um beco sem saída e quanto me senti no fundo, olhei para cima e disse para mim mesma: agora vais ter de subir a puta da montanha.»Abandonada por Pepe, «com quem nunca devia ter casado», Leonor vive sozinha com o seu filho Gongas, que lhe «forra a vida a papel-de-seda». O Gongas precisa de um padrasto e a Leonor precisa de sexo, porque «o sexo afasta a morte». Poderá Luís Maria preencher estas lacunas? Às primeiras impressões, parece o candidato ideal: «Vestia-se bem, cheirava a Davidoff, não usava meias brancas nem tinha mau hálito.» Este soberbo naipe de características oculta um lado significativamente menos soberbo. O idílio é breve; Leonor vê-se trocada por uma «gaja manhosa» que «passava a vida nos copos no Plateau» e «servia de vazadouro a toda a cidade». A aposta seguinte é Constantine, que acaba por não preencher os requisitos necessários, apesar da sua intrigante abordagem circense à prática sexual, que deixa Leonor a sentir-se ao mesmo tempo «a menina do trapézio sem rede e o palhaço sem graça, sem intervalo para vender gomas e pipocas».
A prima Naná não tem melhor sorte. João, o seu grande amor, morre num desastre de automóvel. A memória é tão dolorosa que a linguagem desfalece em silepses involuntárias: «O João era o tipo de homem que adivinhou de que tipo de lingerie é que eu gostava» (isto, diga-se, é o tipo de coisa que um tipo faz que deixa qualquer tipa doida). João lia muito e «falava-lhe de conceitos», dispensando aforismos tão contundentes como «a confusão é o início de uma nova realidade».
Entretanto, uma fotografia precipita a revelação de um segredo, provocando o pânico entre os sinais de pontuação. «A mãe andou com o tio Nuno????» Ainda à procura da montanha no topo do beco sem saída, Leonor veste a sua camisa de noite curta de seda» e faz o que faria qualquer pessoa racional na sua situação: envolve-se com um «hippie» holandês chamado Thomas. «O que tu precisas é de relaxar um bocado», diz-lhe o perspicaz Thomas, enquanto enrola um charro. Será este «o tal»? Leonor apaixona-se. Naná torce o nariz. Gongas dorme em casa da avó. A tia Joana vai morrendo de «esclerose lateral amiotrófica». Thomas acaba por regressar a Amesterdão, apavorado pelo enredo.
O tempo passa e o país avança, devagarinho. Acompanhamos a transição democrática, de um tempo em que a PIDE «interrogava pessoas a torto e a direito» até ao pós-25 de Abril, em que «se apregoava a liberdade a torto e a direito». Já nos anos 80, «o dinheiro e o poder cortam cabeças a torto e a direito».
Seria um erro medir Português Suave contra a realidade. O livro é uma fantasia extraterrestre e a acção decorre num universo paralelo em que a «alma viaja à velocidade de um camelo» e a linguagem há muito faleceu, possivelmente de esclerose lateral amiotrófica. Um automóvel destroçado pode assemelhar-se a um «pão de leite»; uma personagem pode ser comparada a uma «almôndega feliz» e outra pode mudar de nome no espaço de quatro páginas; pessoas podem «comer-se literalmente dentro de um carro», ou «viver literalmente do ar», ou até ficar em casa «literalmente a olhar para ontem».
A vida não é fácil para os leitores de Português Suave. Mas, arrastados pela exuberante vitalidade das protagonistas, lá conseguimos trepar pelo beco sem saída e chegar ao topo da puta da montanha, emergindo gratos e atordoados, como almôndegas felizes, naquele lugar mágico onde o amor triunfa a torto e a direito e o futuro é literalmente risonho.

Rogério Casanova no Expresso de hoje.