As filas espantosas que se têm formado aos guichets do Metro para as entregas dos formulários dos passes têm decorrido de uma forma especialmente ordeira e civilizada. Demasiado ordeira e civilizada, até, pelo que não foi com surpresa que assisti hoje de manhã a uma bem definida peixeirada. Uma senhora gritava veementemente com a funcionária do Metropolitano de Lisboa, devidamente afastada da fila transformada em assistência, com o dedo espetado junto ao seu nariz (o da funcionária), num tom de voz que colocava imediatamente qualquer transeunte desprevenido do lado da funcionária indefesa (ninguém deveria correr o risco de ser colocado numa situação destas antes das 9 da manhã, é uma questão civilizacional, se quiserem) «a mim não me ignoram, a mim não me ignoram!», com ponto de exclamação e tudo que eu vi. Perante isto, há três hipóteses académicas.
Hipótese A: O postulado é falso
O postulado «a mim não me ignoram» é falso porque toda aquela situação tinha nascido evidentemente do facto de a senhora ter sido ignorada previamente. Logo, ao confirmar-se que pelo menos uma vez a senhora tinha sido, efectivamente, «ignorada», fica destruída a validade da afirmação inicial.
Hipótese B: O postulado está incompleto
O postulado «a mim não me ignoram» está incompleto porque aquilo que se pode demonstrar é uma variação subtil da afirmação, ou seja: «a mim não me ignoram quando eu estou a fazer uma peixeirada». O facto de estar uma multidão parada a assistir ao desenrolar da cena prova que a senhora não estava a ser ignorada, embora seja pouco prudente fazer o salto lógico daí para a hipótese mais abrangente que a senhora estava a colocar, isto é, o facto de ela não ser ignorada em caso algum, pois isso seria desconsiderar a relevância da «peixeirada» para o facto de ela não estar a ser ignorada naquele momento. Hipótese, repito, pouco prudente.
Hipótese C: O postulado é verdadeiro
Esta é a única hipótese que não faz da declarante uma mentirosa, mas é ao mesmo tempo a que lhe é mais desfavorável. O postulado «a mim não me ignoram» é verdadeiro, ponto final, incondicionalmente. Resta saber porquê. Declarar que «a mim não me ignoram» significa assumir que há dois tipos de pessoas, as pessoas que são ignoradas e as pessoas que não são ignoradas, e que essa distinção é óbvia. Ora, há algumas características que podem conferir a alguém o estatuto de inignorabilidade, como por exemplo a fama ou a deficiência (ninguém ignoraria Cavaco Silva se ele estivesse ali no guichet, como também é mais difícil de ignorar alguém que só tem uma perna), entre outras. A senhora não reunia nenhuma dessas condições à partida (ela tinha, no entanto, algum peso a mais, mas não creio que fosse a isso que se referia), pelo que se poderá admitir a hipótese de ela considerar que ninguém a poderia ignorar devido a uma condição social relativamente oculta, o que revelaria prepotência e má-educação (uma prepotência e má-educação que a peixeirada estaria a provar). Daí esta ser a hipótese menos favorável à declarante.
A não ser, claro, que a berraria «a mim não me ignoram» não é uma constatação de um facto mas um pedido ou uma imposição: ela estava a exigir que não a ignorassem. A ser assim, escolheu o pior caminho de todos: mais vale ser ignorado do que não ser ignorado pelas razões erradas.