«O Sociólogo-Poeta Boaventura Sousa Santos
por Maria Filomena Mónica
No último mês de Agosto tive uma revelação. Descobri que, nos seus tempos livres, o Prof. Sousa Santos é, ou foi, poeta. Muitos de nós - por sorte escapei à regra - escreveram versos durante a adolescência, os quais, atingida a idade adulta, eram geralmente deitados para o lixo. O mesmo não o fez o Sociólogo-Mor do Reino, Prof. Boaventura Sousa Santos. Tendo publicado a sua poesia, em 1964, sob o nome de Boaventura de Sousa, decidiu reincidir, em 1980, num livrinho intitulado "Têmpera", o qual surpreendentemente não faz parte do farfalhudo "curriculum vitae" que aparece na Internet.
Ainda pensei em fazer uma análise pseudo-laudatória, usando a linguagem críptica de alguns críticos literários, mas, não fosse alguém tomar a paródia a sério, acabei por desistir, oferecendo, em vez disso, excertos destas jóias líricas. No livro, publicado pela Centelha, há um pouco de tudo, desde recordações da educação católica (ver "Cravo Mal Temperado-I) a poemas pseudo eruditos (ver "Novo Mundo") passando por dislates incompreensíveis (ver "Cravo Mal Temperado-II).
Os poemas mais canhestros, mas os mais cómicos, são os de natureza erótica. Começo por citar uma estrofe retirada de "Labirinto": "...e muitas vezes sou um rego d'água/ a beber as raízes do teu corpo de nogueira". Do mesmo poema, leia-se: "A rua retesada/ guarda todos os sinais/ (...) faz parte deste tiro/ estar no alvo/ e retirar-se/ faz parte desta gota/ ser a taça e alagar-se/ faz parte deste cisma/ ter entranhas e sujar-se/ faz parte deste coito/ estar a um canto a masturbar-se". Existem muitos outros poemas, simultaneamente pretensiosos e indigentes, como o "Material de Construção", o qual abre com as seguintes linhas: "Desmamaram-se virgíneas tetas/ e os limões ali cheirando/ que da Ilha dos Amores saíram/ e do silêncio" ou o "Ode à Infância", onde surgem estrofes como " ...nas ruínas do ciclone de quarenta/ trabalho manuais sem mestre nem montra/ entram chefes guerras caracóis/ tesouras e pauzinhos/ nas rachas das meninas/ na catequese é em coro/ e em filas/ no escuro dos intervalos/ medem-se as pilas/ Boaventura tens quebranto/ dois te puseram três te hão de tirar/ se eles quiserem bem podem/ são as três pessoas da Santíssima Trindade...". Que tal?
Homem feito, Boaventura Sousa Santos ainda se orgulha da sua escrita adolescente. Num país onde não existe uma única revista de livros, a coisa passou desapercebida. Até eu levei décadas a dar com ela. Mas, ao fazê-lo, fiquei de boca aberta. Cem anos depois de Cesário Verde ter transformado a poesia portuguesa, o sociólogo de Coimbra ousava oferecer ao público uma série de poemas primários, possidónios e indecorosos, sem que ninguém - a editora, a crítica, os familiares - o tivesse caridosamente prevenido do perigo do gesto. Nos salões pequeno-burgueses do centro do país, estas coisas ainda devem ser apreciadas. Para vergonha do país. Sem ideia, sem originalidade, sem cor, a sua poesia nada exprime. Pasmada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. Fala do perfume quebradiço das glicínias entre a tarde manifesta de Abril, onde o povo prepara o jantar nas folhas de auroras jacobinas e onde alguém escreve guerras contra a gritaria melada duma coca-cola morta. Que Diabo quererá dizer isto? Quando muito, o autor pretende dar lustre aos entediantes trabalhos com que, por esse mundo fora, anda a ganhar o pão de cada dia.
Mas que esperava eu encontrar naquele volumezinho descoberto, entre o pó, numa tarde de Verão? Não deveria saber que o mais certo era deparar-me com as delícias, delíqueos e delírios que agitam os arcaicos cérebros de Coimbra quando lambuzados com o verniz dos crânios que se passeiam por Wisconsin? Em 1871, na sua primeira "Farpa", Eça de Queiroz escrevia que, na literatura nacional, havia uma santa distribuição do trabalho: no final, o autor recebia a condecoração de Sant'Iago, o editor ficava com as perdas financeiras e o leitor entediava-se. Foi isto - ou pelo menos a primeira parte - que, em 1996, aconteceu a Boaventura Sousa Santos, quando o então Presidente da República, Mário Soares, lhe colocou no peito a medalha de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago de Espada. Se o leitor quiser conhecer melhor a alma do homenageado, mais não tem do que ir a um alfarrabista, onde encontrará facilmente resmas atrás de resmas da sua obra poética. Mesmo que, como eu, pertença ao sexo feminino, nada tem temer. Que eu saiba, o Prof. Sousa Santos jamais foi acusado de assédio sexual. Os seus devaneios destinam-se tão-só a fazer corar as meninas das aldeias.
Estava eu a meditar nos seus poemas, quando, ao entrar numa livraria, descobri dois manuais do 12º ano, um, intitulado "Sociologia", e outro, "Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social", redigidos por professores do Ensino Secundário, mas ambos com "a participação do Prof. Dr. Boaventura Sousa Santos". No seu conhecido estilo, eis o que o catedrático diz no prefácio ao primeiro livro: "A aprendizagem de uma disciplina como a Sociologia, disciplina pouco codificada e em grande medida devedora de uma 'pedagogia do silêncio' - do 'faz como eu' - necessita do empenhamento dos professores numa prática de pedagogia activa, através da qual se familiarizem os estudantes com uma forma de conhecimento da sociedade que, no essencial, é uma forma de educação para a cidadania". Temendo não ter sido claro, acrescentava: "Partindo deste manual, os docentes podem fomentar a capacidade de espanto e mesmo de indignação, elementos que em meu entender devem estar no cerne de um projecto educativo adequado ao tempo presente. Trata-se de um projecto orientado para combater a trivialização do sofrimento, por via da produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Um passado que, tendo opções, não optou pelas que evitariam o sofrimento que foi e continua a ser infligido a grupos sociais tão vastos, em todo o mundo, e à própria natureza" (sublinhados meus). Que tal como introdução a uma disciplina supostamente científica? Não perceberão os docentes, os pais e os cidadãos que esta prosa, altamente ideológica, corresponde à agenda política de alguém que, provindo da Direita católica, se converteu, após o 25 de Abril, num dos arautos do Movimento Anti-Globalização? Desnecessário é mencionar o segundo prefácio, uma vez que, na essência, é igual ao primeiro.
Mas vale a pena analisar o seu mais recente livro, "Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique", um texto com ambições, escrito, como de costume, de parceria com um exército de assistentes universitários. Após a adopção do relativismo cultural nos 1960, muitos sociólogos adoptaram uma posição romântica, declarando, à Rousseau, que os "selvagens" eram, pelo menos, tão "bons" quanto nós. Foi uma reviravolta com consequências imprevisíveis. A incapacidade em afirmar a superioridade das tradições culturais do Ocidente contribuiu fortemente para a complacência com que muitos dirigentes do Terceiro Mundo, alguns deles criminosos, passaram a ser encarados.
Boaventura Sousa Santos transformou-se, nos finais dos anos 1970, num influente consultor jurídico dos governos dos PALOP (Angola, Moçambique e Cabo Verde). Subsidiado por organizações supostamente respeitáveis, tem feito dezenas de trabalhos em África, mas as suas investigações estão longe de ser neutras. Basta notar o plural do título, "Justiças", para nos apercebermos do preconceito subjacente aos seus trabalhos. Diante do silêncio dos professores de Direito - os quais temem criticar alguém que se refugiou numa disciplina por eles considerada esotérica - Sousa Santos tem vindo a legitimar práticas menos felizes. Não, nem tudo se equivale. Há sociedades mais iguais, mais livres, mais dignas do que outras. Sei que, se optar pelo caminho do adultério, jamais serei apedrejada em Portugal. O mesmo não me podem garantir as sociedades onde funcionam "as justiças" locais.
Não vou citar, com profusão, o que Prof. Boaventura Sousa Santos escreveu, porque isso só serviria para afastar os leitores. A fim de poderem, todavia, ficar com um gostinho do género, eis uma frase do início: "Neste capítulo, concentramo-nos numa questão específica: as relações entre o Estado e a pluralidade de direitos que, reconhecidos ou não oficialmente, regem os conflitos e a ordem social. Apesar de o paradigma normativo do Estado moderno pressupor que em cada Estado só há um direito e que a unidade do Estado pressupõe a unidade do direito, a verdade é que, sociologicamente, circulam na sociedade vários sistemas jurídicos e o sistema estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos". Pode parecer uma afirmação factual. Mas, subjacente a este olhar, está o desejo de legitimação de práticas legais "alternativas", com raiz numa espécie de colonialismo invertido. Segundo esta corrente, a justiça dos brancos está manchada pelo pecado original do imperialismo; a dos nativos, porque mais genuína, é evidentemente melhor.
Ao longo dos séculos, os liberais têm louvado, e com razão, a importância do Estado de Direito. Podemos encontrar já elementos desta concepção no discurso que, no século V AC, Péricles fez em honra dos mortos da Guerra do Peloponeso. Eis o que Tucídides reproduziu: "Quando se trata de assegurar a solução de disputas privadas, todo e qualquer homem é igual perante a lei. (...) Somos livres e tolerantes no que diz respeito à vida privada; mas, no âmbito do espaço público, obedecemos à lei". A Civilização Ocidental é herdeira destas palavras. Não podemos, não devemos, menosprezar este legado.
Não se pense que o facto de, em anteriores ocasiões, ter criticado Boaventura Sousa Santos releva de uma qualquer obsessão, causada sabe-se lá por que rasteiros motivos. Se escolho a sua figura é por fazer ela parte da "Nomemklatura" sociológica, não só portuguesa (via Associação Portuguesa de Sociologia), mas internacional (através das "redes" em que actualmente está organizada a investigação). Não vale a pena criticar soldados quando temos à mão um general. Na luta, há que apontar à cabeça.»