por Vasco Pulido Valente
A América de Bush, a "América vermelha", tornou a pôr a religião no centro da política contra a "América azul" e, sobretudo, contra a Europa. O desprezo que a Europa sente pela América, que reza na escola, que vai à igreja, que prega a abstinência, que não admite o aborto e que vota Bush, é igual ao que essa América sente pela "velha" Europa secular e pelo seu lento "suicídio demográfico". Não se trata aqui de uma discordância temporária ou acidental. Há uma separação drástica entre uma cristandade militante, como nunca o tinha sido desde meados do século XIX, o secularismo que a nega e o Islão por quem ela se julga, ou de facto está, ameaçada. O homem (ou a mulher), que no Texas acredita na literalidade da Bíblia, na santidade da família, na pena de morte e na guerra justa, não pode aceitar, não pode mesmo tolerar, o europeu (ou nova-iorquino) céptico, agnóstico ou francamente ateu,"egoísta demais para fazer filhos" e, sobretudo, desinteressado de um futuro que não verá e que nada o impele a defender.
Um exemplo. Este Natal, a presença incómoda da "América Vermelha" levou a "Newsweek", a "Time" e até Larry King a falarem longa e seriamente da Natividade, isto é, do nascimento de Cristo. O resultado foi desastroso. Porque, para falar da Natividade, ou se repetem as piedades do costume (em parte inspiradas no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus), coisa que não leva longe, ou se entra numa exegese que destrói a narrativa tradicional. A "Newsweek", a "Time" e Larry King tentaram escolher o meio caminho e naturalmente falharam. As duas visões não são compatíveis. Pior ainda: uma exclui a outra. A exegese transforma o episódio de Belém, da manjedoura, dos reis magos, da estrelinha e por aí fora num acréscimo tardio com intenções de legitimação e propaganda, com datas claramente erradas, com elementos da literatura apologética grega e latina. A "América Vermelha" não ficou com certeza comovida. E a "América Azul" como a "velha" Europa ficaram com certeza confirmadas na sua indiferença. Os dois mundos não comunicam e o exercício só conseguiu mostrar a distância que os separa. Já não existe um Ocidente, existem dois, de novo divididos pela religião.
in Público, 26-12-2004