(...) O que dá um certo desgosto é ver como os escritores - os escritores medíocres de qualquer país, de qualquer tempo - têm essa cara de escritores. Em qualquer profissão é assim - advogados medíocres se esforçam para pensar como advogados, ter hobbies de advogados e mulheres com cara de mulheres de advogados. Mas nas artes, que são justamente o terreno das individualidades (oh, fui um pouco diáfano agora), não deveria ser assim, não é? E no entanto vemos pintores usando boinas e fazendo uma cara impressionante de pintores, com um jeitão muito artístico, e escritores que bebem porque se lembram vagamente que Hemingway bebia, e usam barba para ter uma cara seriona e atormentada, e falam desse jeito oh-tão-diáfano sobre literatura, e (claro, claro, claro) são de esquerda - automaticamente de uma esquerda ligeira, irreflectida, simpática e emocional.
"Todos os escritores brasileiros são de esquerda", disse num jornal um escritor barbudo, Marçal Aquino, que escreve sobre assassinos profissionais baratinhos que trabalham nas estradas mais vagabundas e esburacadas do país (ainda se fosse nas estradas mais atraentes! Caramba! Que mau gosto!) E sim, tem razão: os escritores são de esquerda como os pintores usam boina - porque lhes disseram que é assim mesmo e eles não ficaram pensando muito pra ver se era assim mesmo. Porque, em suma, queriam ter a cara da profissão, queriam se sentir muito escritores. Porque são medíocres. Oh, a pena que têm dos pobres. Oh, as visitas que fazem a presídios...
Todos ouvimos em algum lugar que devemos evitar a construção de personagens unidimensionais e estereotipados na literatura; que todos os personagens devem ser muito complexos, muito surpreendentes. O motivo disso, costuma-se dizer, é que "as pessoas na vida real são multidimensionais e surpreendentes". Mas o que fazer quando os escritores mesmos são uns personagens tão estereotipados, e se aproximam de mim usando boinas e bottoms do PT e falando do quanto resistiram à ditadura?
Os escritores são de esquerda como os pintores usam boina, Alexandre Soares Silva, in revista Atlântico nº1
* É verdade. Quando voltava do quiosque com o Público na mão levei com dejectos de pombo na cabeça. Foi a primeira vez, o que é extraordinário vivendo eu em Lisboa há tanto tempo, mas fico com a clara sensação que o pombo era de esquerda e apoiante de Manuel Maria Carrilho.