Foi assim (e até se perdoa a gralha: Bryce Dressner é o guitarrista, e Bryan Devendorf o baterista):
Matt Berninger chega à boca do palco em jeito trôpego, canta I won"t fuck us over/ I"m mr. November. Mr November (que é, igualmente, o nome da canção), ali, simboliza um homem que é um has been e mesmo assim promete futuro. Berninger põe o pé na primeira cadeira das doutorais e vai pelo meio do povo saltando cadeira após cadeira.
É uma imagem impressionante do concerto dos National, anteontem na Aula Magna. Procurem no Youtube por The National + Mr November + Lisbon + Aula Magna: ninguém agarra o homem como agarrariam um Bono qualquer. Amparam-no para que não caia, mandam-lhe palmadas nas costas como a um amigo. Vendo do palco para a plateia há uma sensação de "ascensão", a Aula Magna levanta-se em aprovação àquela fusão entre público e cantor. Isto é uma banda supostamente "íntima". Anotem isto: a intimidade é uma granada.
Isto deu-se no fim. Para trás tinha ficado uma espécie de súmula dos últimos dois discos, Alligator (2005) e Boxer (2007) - antes do concerto, Bryce Dressner, baterista, andava zangado porque não tinha conseguido um bom som para a percussão. Brainy, a primeira canção da noite, confirmou os perigos: o som estava ridiculamente mau, os instrumentos separados, as guitarras sem força, a tarola era uma desgraça.
Mas havia mais. A voz de Berninger tinha ficado nos bastidores. Bryan Devendorf (guitarrista) tinha dito: Berninger "bebe sempre muito antes dos concertos" - e era notório que o vocalista não estava ali. Os tropeções continuaram em Secret meeting (que mesmo assim arrancou a primeira manifestação de devoção) e Mistaken for strangers. À quarta canção, Baby, we"ll be fine, o violino entrou (ontem Padma Newsome juntou-se ao quinteto, ocupando-se do violino e das teclas) e o mundo pareceu começar a endireitar-se.
O primeiro momento de irreprimível esplendor chegou com Slow show, que começa assim: "Made a mistake in my life today", e vai parar aqui: "I wanna hurry home to you." Fez sentido o hurry da letra, porque o que apareceu foi uma versão mais intensa, mais rápida, mais urgente que em disco. Com os problemas de som acertados e Berninger a perceber o peso das palavras que tinha para cantar, foi sempre a escavar: Squalor victoria foi um torpedo, em Abel voz e guitarras pareciam querer rasgar um espartilho. A Aula Magna rendeu-se, a batalha estava ganha e, a cada acorde menor, a cada melancólico verso, havia um pequeno Martim Moniz entalado na garganta a preparar a explosão de histeria final.
A histeria foi merecida: houve uma certa coragem naquilo de subir para um palco, pôr os nós dos neurónios sob a forma de palavras e notas musicais, cantá-las e tocá-las frente a milhares de rostos que não se conhecem. E houve um terno masoquismo do público, uma espécie de hombridade em baixar a guarda e deixar palavras e notas atingirem-nos naquele ponto em que o ruído e a melodia são simultaneamente angústia e prazer.
Ada foi sempre a crescer de temperatura, Apartment story já tinha o mercúrio derretido, quando About today - das mais amargas canções de amor dos últimos anos - chegou para encerrar o concerto já não havia termómetro que servisse a Aula Magna. Por um instante foi possível ter 18 anos outra vez, exagerar nas emoções sem super-egos a atrapalhar, amparar-se um trintão bêbado, dar palmadas nas costas a um amigo acabado de conhecer.
Matt Berninger não é um has been. Canta o que já foi (e foi mau) e ainda pode voltar a ser (e ser pior e ter de se aguentar). Aquela catarse colectiva é fácil de perceber: aquilo foi uma IURD dos angustiados. Mas esteticamente imaculada.
João Bonifácio, no Público de hoje
P.S: Espero a apreciação crítica deste senhor.