terça-feira, 26 de abril de 2005

A arquitectura não é para aqui chamada

Desconheço os contornos do caso específico mas a questão da casa de Almeida Garrett é muito interessante em abstracto. Fala-se, percebo eu, de um imóvel que pertence a um particular ao qual é atribuído um valor patrimonial devido à sua história e não tanto à sua arquitectura. Não perco tempo a perceber se esta valorização é justa ou não. Parto do princípio que é. Esta é a situação que me interessa tanto: um particular (individual ou colectivo) é dono de um imóvel que quer demolir para poder construir no terreno respectivo um edifício que lhe traz um benefício bastante superior. Consideremos que o actual valor imobiliário do imóvel é A, e que o potencial valor futuro é B. B é superior a A porque o indíce de construção permitido é superior ao actual. No caso específico da casa onde, dizem as más-línguas, Almeida Garrett defecou um par de vezes, a diferença entre A e B não é assim tão grande, já que dos actuais 2 pisos se passa para 5 (ainda assim deverá corresponder a 3 ou 4 vezes mais). Admitamos a hipótese de, em vez de ser 3 ou 4 vezes, ser 100 vezes maior (como deve acontecer com aquele edifício de esquina na Fontes Pereira de Melo, perto do Imaviz e do Saldanha Residence, o tal que tem um projecto do Bofil preparado). Perante este cenário, o que pode o Estado fazer? Não nos podemos esquecer do interesse do proprietário: classificar o edifício, imobilizando totalmente as hipóteses do proprietário, constituiria uma violação da propriedade privada (há quem diga que isto é uma violação dos Direitos Humanos.) Logo, restaria ao Estado comprar o imóvel pelo valor de B, o que, no caso da diferença entre A e B ser da ordem de 100 para 1, poderia ser considerado um desperdício de dinheiros públicos (o facto de Almeida Garrett aí ter defecado um par de vezes vale B?) Há, portanto, que encontrar soluções alternativas de modo a que seja mais vantajoso para o proprietário manter o actual edifício (claro que nesta situação o que deveria acontecer é o que aqui é dito: «os admiradores da obra de Garrett criam uma associação de amigos de Almeida Garrett, que enceta negociações com o proprietário para comprar, com as quotas que pagam, o dito prédio.») Vamos por esta hipótese de lado, considerando que não há, nem há perspectivas de haver tão cedo, uma associação de amigos de Almeida Garrett. A solução mais inteligente parece-me a seguinte: criar as condições fiscais necessárias que incentivem o proprietário a manter o imóvel. Como? Incentivando o actual proprietário a criar a associação de amigos de Almeida Garrett, com sede no dito imóvel, com benefícios fiscais que justifiquem a não opção pela solução B.

Como é óbvio sou pela manutenção de toda e qualquer construção que, apesar de não ter valor arquitectónico, carregue algum significado histórico relevante. Isto porque me parece ser uma medida eficaz para o melhoramento da relação entre a cidade e os seus habitantes. Uma cidade só pode ser boa se é amada por quem lá (cá) vive. E amar seja o que for precisa sempre de um passado visível*, tal e qual as molduras dos avós que temos espalhadas pela casa. Que se mantenha a casa onde Almeida Garrett defecou um par de vezes (sem prejuízo para o actual proprietário) e espete-se lá uma placa em doirado a dizer AQUI DEFECOU ALMEIDA GARRETT (UM PAR DE VEZES).

*Este passado visível só pode ter reflexo em duas situações: valor arquitectónico ou valor histórico. Preservar o velho pelo velho é um crime.