Não é a primeira vez que João Pereira Coutinho se debruça sobre a arquitectura moderna. Também não é a primeira vez que usa os exemplos pioneiros da arquitectura moderna como pecados capitais de um grande mal orquestrado pelos «autoritários» arquitectos. De qualquer maneira, e porque sou sensível aos argumentos de JPC (ou seja, sei que ele não está a ser desonesto, está apenas mal informado), aqui fica um excerto da sua crónica no renovado (yeah, right) Expresso:
(...) O que nos diz Alain de Botton? O mesmo que Ruskin um século antes: a arquitectura não se limita à qualidade técnica que exibe; a arquitectura é uma arte humana e, como todas as artes humanas, lida essencialmente com a natureza dos homens em sociedade. Tradução: se um arquitecto acredita que o seu «métier» é semelhante ao de um poeta ou pintor, ele passa ao lado do essencial. A arquitectura tem pouco a ver com a originalidade solipsista de outras expressões artísticas. Pior: na busca da originalidade arquitectónica existe sempre uma pulsão autoritária - a necessidade de impor colectivamente o que apenas nos pertence individualmente. Não preciso dar exemplos, embora as experiências urbanísticas do nosso Siza fossem um bom exemplo: a avenida dos Aliados, no Porto, um espaço tradicionalmente de encontro e fruição, está hoje convertido num deserto de cimento por onde se passa mas não se fica.
Alain de Botton também oferece um caso: na década de 20, Henry Frugès, industrial francês, resolveu encomendar a Le Corbusier um conjunto de habitações para os seus operários. Le Corbusier correspondeu à encomenda com utilitário concentrado: habitações despojadas; janelas rigorosamente rectangulares; total ausência de "folclore decorativo", para usar as palavras do próprio. O resultado, do ponto de vista funcional, é perfeito. Mas perfeito na cabeça de Corbusier.
Na realidade, os operários que passavam 12 ou 14 horas a trabalhar numa fábrica desejavam mais do que 'função' e 'racionalidade' na altura de regressar a casa. Por isso começaram, com o passar do tempo, a rasgar janelas onde só havia cimento; a plantar pequenos jardins; a acrescentar portadas de madeira; e a desfigurar, para horror do arquitecto, o sonho abstracto que o animara. Ainda hoje é possível visitar Pessac, no sul de França, e contemplar o local do crime: o lugar dessa revolta humana contra os abusos do racionalismo modernista.
(...) Relembro apenas que os sítios que habitamos devem expressar a forma como vivemos. E nem sempre espaços perfeitos, estética ou funcionalidade, são uma promessa de felicidade. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para as nossas próprias casas: espaços imperfeitos que se vão moldando ao nosso corpo, e ao corpo das nossas rotinas, como se fossem peças de vestuário que habitamos por dentro. E que não trocamos por nada.
Corbusier foi um homem perturbado com uma visão, e suficientemente hábil para a conseguir fazer avançar junto dos homens e no terreno. Fez muito de questionável e até de condenável (há quem não o ache, eu estou na primeira fila a atirar as pedras que forem precisas), mas tornou-se, por mérito próprio, num mentor de uma geração, ou de várias gerações. Como sempre acontece numa revolução (a a arquitectura moderna foi uma revolução), os excessos dos PRECs não são suficientes para condenar a coisa toda. Corbusier foi um mal necessário que ajudou a arquitecura a sair do buraco eclético e superficial onde se tinha enfiado. Com o seu racionalismo (lembrar que quando se falar de arquitectura moderna nem sempre se fala de racionalismo), Corbusier lembrou os valores intrínsecos da arquitectura. Falhou, falhou redondamente sobretudo nos seus projectos de habitação colectiva (eu não viveria lá nem à lei da bala). Mas abriu muitas portas. E usar esses exemplos como prova da incapacidade da arquitectura moderna, do seu ímpeto totalitário e desumano, é não querer discutir ou apreciar tudo o resto. Também não preciso dar exemplos, mas posso invocar um homem que deve muito a Corbusier: Fernando Távora. Muito mais haveria para discutir, mas acontece que vou almoçar.
* A crónica de JPC chama-se «Arquitectura da felicidade».«Os nossos valores» é o título da crónica vizinha de página de Daniel Oliveira, que não li, e nem sei de que trata (reparo que começa com «Bush»), mas que se adequaria na perfeição a esta de JPC, com ênfase noo «nossos».