Muito interessante a análise que Pacheco Pereira faz ao discurso de Ratisbona do Papa. O texto do discurso é importantíssimo, concordo, mas a minha posição mantém-se: não cabe a um Papa «criticar o Islão» como se de um mero intelectual se tratasse. Apesar de eu ser particularmente sensível a essa relação entre a religião e razão. De qualquer maneira, aqui fica o devido copy / paste da segunda metade do artigo:
(...) O que é que o texto papal diz? Que a razão humana, o logos dos gregos, é um elemento indissociável da voz de Deus, e que todas as tentativas de separarem razão e fé, colocando uma contra a outra, são um erro. O Papa identifica essencialmente duas correntes que cometeram esse erro: uma a que afirma a transcendentalização absoluta de Deus; a outra a que resulta da separação iluminista entre fé e razão, que foi transportada para o cientismo contemporâneo.
Muito do que diz o Papa tem que ver com a percepção que tem Manuel II Paleológo de que a violência ao serviço da fé é "desrazoável" e "contrária à natureza de Deus". O próprio Papa diz que esta constatação é a "frase decisiva em toda a argumentação", e que o imperador, um erudito de cultura grega clássica, estava a enunciar um dado fundamental da tradição clássica grega, absolutamente idêntico ao que é a "fé em Deus fundada na Bíblia".
Ora, aqui o Papa critica o islão, não por causa da violência da espada de Maomé, mas sim porque "na doutrina muçulmana Deus é absolutamente transcendente", ou seja, dito em breve e em grosso, não há verdadeira interacção entre Deus e os homens, não há necessidade da razão, a fé é essencialmente aceitação e obediência. O Papa refere, "para ser honesto", que na tradição teológica cristã surgiram tendências do mesmo tipo, mas condena-as na mesma crítica que faz ao islão.
Porque é que o Papa diz isto tudo? Está lá no texto em todas as entrelinhas e nalgumas linhas: ao valorizar a fusão plena da tradição grega do logos com o cristianismo, o Papa está a enunciar a tradição cultural da Europa, da história tumultuosa do seu pensamento e dos fundamentos da sua identidade. Está a falar de religião e de política, de cultura e de pensamento, da União Europeia e da Turquia, do cristianismo e do islão. Isto sim é que devia ser discutido, isto é o que o Papa esperava que fosse discutido. E isto é que interpela o islão, se ele se deixar interpelar.