Sem querer dei por mim a pensar nas razões que me levam a manter um blogue há mais de cinco anos. Sem querer, porque não gosto de pensar ao fim-de-semana sobre coisas que não se relacionem directamente com o Benfica (que amanhã joga no sempre difícil D. Afonso Henriques, não olvidar). Essas deambulações levaram-me a muitos sítios, quase todos não recomendáveis, embora entre eles estivesse a pergunta «o que é um blogue?» Ouvi no outro dia uma definição hiper tecnológica de «blogue» que me repugnou, como «plataforma» e não sei o quê, como se um poema se pudesse definir como «um conjunto de frases curtas, ocupando cada uma delas uma linha de texto, que podem rimar ou não, organizadas em sub-conjuntos de cadência mais ou menos regular». Concedo que um «blogue» pode ser «um suporte»; mas só na medida em que reconhecer as especificidades desse suporte se torna essencial para que se perceba o que é realmente um blogue e o que leva tanta gente a blogar.
Não me vou debruçar - até porque não gosto de me debruçar, regra geral - sobre a blogosfera como fenómeno sociológico, e essas merdas. Por isso é provável que muitas das asserções que vou aqui fazer não façam sentido quando testadas contra alguns tipos de blogues, porque os blogues que me interessam são muito limitados em número e género, formando um grupo formalmente mais ou menos homogéneo.
Antes de mais, um blogue é uma voz. E como qualquer voz, para além daquilo que expressa, do seu conteúdo material, tem um tom. Um tom que revela mais sobre o seu autor do que qualquer outra coisa. Esta é a principal diferença entre um blogue e - talvez o seu género mais próximo - a crónica (a opinião, se quisermos). Num blogue não há só opinião: há estados de espírito que não se tentam controlar. Mas que estados de espírito são esses? São reais? Manipulados? Genuínos? Fabricados? O autor de um blogue, quem é? Que distância medeia entre a pessoa e a pessoa que escreve o blogue?
É mais ou menos aceite que um blogue nunca revela a verdadeira pessoa que o escreve, que há um filtro, ou vários filtros (que se alternam), que ajudam à criação de uma personagem autoral. Este argumento parte de um princípio duvidoso: o de que existem pessoas para além das personagens. O de que existe algo em cada um de nós que se pode assumir como o verdadeiro eu, ou uma merda assim. Não sei onde as pessoas vão buscar uma ideia tão radical. Não é preciso ser-se Fernando Pessoa para se saber que nós não existimos como uma identidade indivisível. Os nossos comportamentos mudam conforme os contextos. As nossas opiniões moldam-se ao meio envolvente. A linguagem - e o próprio pensamento - é camaleónica. O mesmo assunto tem tratamentos diversos se estamos a conversar com a nossa sogra ou se estamos na caixa de comentários de um site obscuro. E qual deles é o mais real, o mais verdadeiro? E será que esta mania de acabar os parágrafos com uma pergunta é para manter até ao fim do post?
Não sabemos. O que sabemos - falo por si, leitor - é que as coisas nem sempre correm como esperamos. Quando estamos na presença de outras pessoas o espectáculo costuma ser sem rede, e às vezes tropeçamos e caímos, e não há volta a dar. O arrependimento é uma constante do dia-a-dia. Damos frequentemente de nós próprios uma imagem não editada, indesejada. Porquê? Será esta pergunta o fim do parágrafo? Não é. Damos frequentemente de nós próprios uma imagem indesejada porque estamos constantemente a construir essa imagem. A alterá-la, a ajustá-la, a corrigi-la. E como tudo o que nós fazemos, não é perfeito. É um processo consciente - parte dele - e quem não o faz não costuma ser tolerado socialmente, e nós queremos ser tolerados, se puder ser até amados. O blogue é apenas mais uma dessas imagens.
Apenas mais uma dessas imagens? E queres ver que agora as perguntas passaram para o início dos parágrafos? Não é apenas uma dessas imagens, é provavelmente a melhor, a que corresponde mais àquilo que queremos ser, mesmo se temos testículos e assinamos «Marlene» (ainda que nesse caso uma visita a um terapeuta não seja totalmente descabido). Não só àquilo que queremos ser, mas àquilo que somos de facto, sem a vulnerabilidade que são os outros. Os outros atrapalham-nos na nossa busca de glória pessoal. É um facto. O bullying é constante e omnipresente, o que varia é apenas - como diria Pôncio Monteiro - a intensidade. O que tem graça é que aquilo que queremos ser é indissociável do modo como os outros nos vêem. No fundo, queremos que os outros olhem para nós, mas para uma versão que nós achamos mais condizente connosco próprios. É como o choque que é vermo-nos na televisão ou em fotografias: aquilo que ali está não sou eu. Nunca é, porque é sempre o resultado de uma observação de fora para dentro, e como nós sabemos a beleza está toda em observar de dentro para fora. O blogue é assim a oportunidade de forjarmos quotidianamente a nossa verdadeira projecção identitária, e o aparente paradoxo aqui presente remete-nos para Batman. Batman é Batman ou Bruce Wayne? Bruce Wayne existe para além de Batman? Nós sabemos que não, mas se Bruce Wayne não tivesse inventado Batman, então nunca saberíamos que Bruce Wayne era Batman. Viveríamos na ignorância que seria acharmos que Bruce Wayne era apenas Bruce Wayne. Ainda bem que esta questão ficou clarificada.
Até porque Batman é um anti-herói, e um anti-herói é, segundo a Wikipedia, «alguém que protagoniza atitudes referentes às do herói clássico, mas que não possuem vocação heróica ou que realizam as façanhas por motivos egoístas, de vaidade ou de quaisquer géneros que não sejam altruístas.» A questão do não-altruísmo do anti-herói (que, relembro, somos nós, de onde se conclui que o altruísmo é um conceito inatingível por natureza, uma contradição nos termos, não puxem por este assunto porque isto já me valeu um discussão interminável noite dentro sobre a Madre Teresa de Calcutá, e acreditem que fiquei vacinado) remete-nos para Agustina. Porque no fundo vem tudo na Agustina.
Agustina diz que não escreve para ter amigos, mas para ter leitores, e que o seu objectivo é incomodar o maior número de pessoas. A questão do narcisismo explica-se pela necessidade que quem escreve tem em estar seguro de que isso vale a pena. Esta busca de uma identidade mais focada é arriscada e até um certo ponto indesejada. Quem nos garante que o manto de artimanhas que temos ao nosso dispor para viver uma vida relativamente tranquila e livre de conflitos - a honestidade, por exemplo, é uma qualidade absurdamente sobrevalorizada - pode ser assim dispensada tão facilmente? Escrever - aqui na versão «escrever um blogue» - é ir fazendo uma purga dessas habilidades sociais que fazem a intermediação entre nós o mundo, com o objectivo de fazer colidir sem almofadas essas duas entidades. Para o fazer temos de acreditar que vale a pena, que alguém - para além de nós - está à espera que o façamos. Acreditar nisso é sempre um pouco irreflectido, e revela o tal narcisismo. Que isto tudo se faça às custas da criação de uma personagem só aumenta o seu interesse.
Disse que o objectivo disto é fazer-nos colidir com o mundo. Este é um dos factores mais importantes: um blogue não pode ser umbiguista, ou apenas umbiguista, nem lírico, nem poético, nem obcecado com a nossa vida interior. Um blogue tem de ser sempre sobre a relação entre uma pessoa e a cultura, e o que se espera é que desse confronto, tal como no Acelerador de Partículas, nasça qualquer coisa que ainda não tinha sido observado. Um blogue não pode ser sobre nós, nem sequer sobre os nossos amigos. Tem de ser - sempre - sobre merdas que interessam às outras pessoas - e parte-se do princípio que as outras pessoas também não estão interessadas nelas próprias - para que se reúnam as condições para o diálogo. Porque, narcisismos à parte, estamos aqui para dialogar, para aprender. Se não estivéssemos aqui para dialogar, estaríamos a escrever para a gaveta, ou para o moleskine, ou para páginas e páginas de romances que nunca seriam publicados por manifesta falta de talento. Queremos que os outros reajam, que se manifestem, que nos insultem, que nos adorem. Mas que nos insultem e nos adorem com base nos argumentos que nós fornecemos. Isto faz toda a diferença.
Quem começa a escrever um blogue na ilusão de que tem algo a dizer ao mundo que o mundo não pode deixar de ouvir, começa mal. O mundo, e isto é uma das lições mais importantes a tirar disto tudo, está-se nas tintas para nós. O que reforça a ideia da necessidade de uma certa ficcionalização de nós próprios. Na ficção podemos criar um mundo que não se está nas tintas para nós. Um blogue tem de partir sempre desse princípio: o de que não é apenas o nosso nome que esconde uma caracterização de bastidor. Aquilo que é objecto dos textos de um blogue é também uma certa ficcionalização da realidade, nem que seja por uma questão de escala e de tempo. Os nossos preconceitos são muito úteis nessa redução de tudo o que se mexe a dois ou três aspectos. Porque com dois ou três aspectos ainda conseguimos fazer um malabarismo minimamente interessante para quem lê sem deixar cair as bolas, e o que nós mais desejamos é entreter a audiência. Preferes ser amado ou respeitado? Eu sei que sacrifico de bom grado o respeito.