domingo, 1 de março de 2009
Isto não se faz às pessoas
A Praça de S. Marcos passa a uma «praça rectangular rodeada de arcadas, com uma torre num canto e fechada no topo por uma catedral famosa» (cito de memória); o Lido passa a uma «longa faixa de areia»; o vaporetto a «water bus». Se em Saturday o artifício formal é a omissão de referências às horas do dia e ao passar do tempo, em The Comfort of Strangers McEwan decide-se a não nomear nada daquilo que é único em Veneza (como o seu nome), talvez por causa da sua familiaridade universal. A difícil verosimilhança da história passa inevitavelmente pela sensação de desconforto solitário que Pavese ilustra na epígrafe escolhida por McEwan:
Traveling is a brutality. It forces you to trust strangers and to lose sight of all that familiar comfort of home and friends. You are constantly off balance. Nothing is yours except the essential things - air, sleep, dreams, the sea, the sky - all things tending towards the eternal or what we imagine of it.
Ao despir Veneza e os seus símbolos dos respectivos nomes, McEwan é forçado a descrever com detalhe a cidade que suporta este pequeno romance (100 páginas, um conto longo?), até porque ela nunca é apenas um local: Veneza parece amaldiçoar a narrativa desde a primeira página. E dizer que «Veneza é única» é mais fácil do que prová-lo. Como um turista numa terra desconhecida, o narrador não facilita a vida ao leitor e força-o a um desiquilíbrio (como em Pavese) que impede qualquer sensação de conforto. Quem já foi a Veneza sabe que é fácil acreditar-se que há um preço a pagar por tanta beleza. Veneza é uma espécie de pecado, um priviliégio que nos obriga a ceder alguma coisa em troca. Tal como a marijuana que Colin e Mary fumam, que, apesar de não dar ressaca, parece carregar um fardo moral inalienável. Colin e Mary estão indefesos perante esta cidade que não é nomeada, e nós com eles.