O facto político mais relevante da semana está subtilmente escondido numa reportagem da Única sobre a Barbie (esse «porno toy», como a classificou Joana Amaral Dias que, misteriosamente, aceitou fazer parte de uma reportagem sobre barbies, cansada que está do estereotipo que dela fizeram.) Talvez a dar razão a Abel Barros Baptista, que na sua última crónica para a LER constrói, com recurso a uma linguagem sarcasticamente jornalística, uma notícia ficcionada sobre alegadas polémicas do meio literário (colocando, por exemplo, Harold Bloom «alegadamente numa festa algures» a dizer que Gil Vicente é melhor do que Shakespeare) onde se conclui que «a culpa é seguramente do primeiro-ministro português, José Sócrates», a reportagem sobre a boneca mais famosa do mundo revela, no seu derradeiro parágrafo, que os ministros ofereceram a José Sócrates pelo Natal «um cheque de compras para a Fashion Clinic» (a fonte indicada é o El País). A itenção do repórter parece ter sido a de ampliar o alcance da sua reportagem (que balança entre o óbvio, «Joana Amaral Dias é um borracho», e o abjecto, «países com atrasos significativos, como a Arábia Saudita (...) ou Portugal») com este fait diver, mas a revelação não deixa de ser gravíssima. A vitimização permanente de José Sócrates tem passado quase sempre por fazer queixas e queixinhas da imprensa que aparentemente o retrata de um modo infiel e com recurso a uma evidente má-fé; por oposição ao verdadeiro José Sócrates, um homem determinado e com um projecto sólido para o país, aparece o José Sócrates construído pela imprensa e emprestado à consciência pública, um homem vazio de conteúdos e obcecado pela imagem. O preconceito sobre o homem alastrou-se também ao governo, que é acusado de promover uma cultura do show-off vazia de conteúdos e de resultados (com o Magalhães a surgir como epítome eficaz). Estaremos todos nós a ser injustos? Estará o país a fazer uso da sua característica tendência para a maledicência e a deixar-se ludibriar pela má-língua dos jornalistas? Ao ficarmos a saber que «os seus ministros» ofereceram a Sócrates um cheque de compras para uma loja de roupa cara e de nome foleiro, ficamos subtilmente a saber que essa imagem é partilhada por quem com ele lida diariamente. O facto de «os ministros», enquanto tal, oferecerem um cheque de compras ao primeiro-ministro da Fashion Clinic («o primeiro ministro da Fashion Clinic», uma curiosa derrapagem sintáctica) revela o verdadeiro foco de interesse de José Sócrates (presume-se que a oferta não terá sido sarcástica) e a degradação institucional a que chegou «o conselho de ministros». Este gesto acabou por ser, involuntariamente, um óptimo auto-retrato do grupo de pessoas que nos governa.
A democracia, como qualquer outra instituição humana, precisa de símbolos. Os gestos que não são operativos devem ser simbólicos. Os símbolos são úteis porque representam realidades não materiais. O cheque de compras da Fashion Clinic assume-se, neste sentido, como um símbolo particularmente eficaz.