segunda-feira, 24 de janeiro de 2005

Sontag tem razão

Recentemente, num jantar de amigos, discutia-se Paula Rego. A admiração pela simplicidade do discurso era generalizada: Paula Rego tem respostas desconcertantes e afirmações muito cruas sobre o que faz. Quando confrontada com a forte simbologia de uma rosa num quadro seu, Paula Rego respondia que apenas tinha pintado a rosa porque esse canto do quadro lhe parecia muito vazio. Os exemplos são muitos e todos dentro da mesma lógica. O ponto importante nesta história era evidente: o artista nem sempre sabe o que faz. A intuição (ou outra coisa qualquer) gera um impulso irreflectido que só mais tarde, a posteriori, aparece descodificado por um terceiro: o crítico. Agora, é legítimo colocar a questão: qual a importância dessa análise, quando manifestamente é algo exterior à obra, para a valorização da arte? Eu, que depois do quinto copo já não meço as palavras, disparava com Susan Sontag e o seu Against Interpretation, mas ao mesmo tempo reconhecia inteira autoridade ao crítico. Talvez esteja aqui o material de que são feitos os grandes: chegar lá sem saber, ou chegar lá através de um atalho que só eles conhecem e que deixa toda a gente desarmada. Paula Rego sabe muito bem que a sua obra não se reduz a rosas que enchem cantos de quadros vazios, mas ao recusar voluntariamente falar sobre o seu trabalho noutro nível que não esse, está, e muito bem, a centrar a questão no essencial, o que nos leva outra vez a Sontag.

Na altura fiz o paralelo com Souto Moura (não me lembrando que recentemente foi anunciado a construção do Museu Paula Rego, em Cascais, desenho do próprio, o que se assume como uma coincidência feliz). Souto Moura possui essa qualidade (que deixa sempre a dúvida de ser intencional ou não) de reduzir o seu trabalho a um discurso simples, quase simplista, de palavras secas e desconcertantes. «Faço as coisas porque me parecem bem», dispara, pondo de lado qualquer intenção intelectual de afirmação pessoal. Quer isto dizer que as palavras que são escritas sobre a sua obra o surpreendem? Quer isto dizer que, à semelhança de Paula Rego, Souto Moura não sabe o que faz? A resposta é óbvia e serve para descobrir a intencionalidade da atitude. Os adjectivos são correctos e colam-se bem à arte. Mas se a arte (e isto é que Souto Moura e Paula Rego sabem bem) só se descobre depois dos adjectivos, então os adjectivos serão, provavelmente, errados.