quarta-feira, 10 de maio de 2006

A folha em branco

(...) A arquitectura tem especial predilecção pela folha em branco. A proposta filosófica da tábua rasa medra muito bem nas faculdades do risco. Não há como reinventar o espaço considerando que tudo o que preexiste será demolido. Árvores em terreno de intervenção remodeladora são ervas daninhas. Acresce que para muitos arquitectos não raro o objecto desenhado é mais importante do que quaisquer outros valores, sejam eles a habitabilidade, o conforto, a praticabilidade, a ecologia e até coisas bem comezinhas como a trivial sombra. A sombra é boa para os cidadãos mediterrânicos mas não para certa arquitectura que receia ser ensombrada.

O argumento de que, no futuro, quando tiverem crescido as escassas e esqueléticas árvores que costumam adornar as maquetas da coisa arquitectónica, haverá de novo árvores frondosas e sombra não pega, não convence o meu sensível cronómetro. Sei bem que o meu tempo de vida e o das tílias ou dos plátanos não é o mesmo. À descendência quero deixar um mundo mais bonito, claro. Com lindos e sofisticados projectos urbanísticos, fruto do bom-gosto e da espantosa imaginação humana. Mas deixo-lhe também a ela, à descendência, o encargo de substituir as árvores estragadas — quando elas estiverem de facto estragadas.


Rui Ângelo Araújo, n'Os Canhões de Navarone