Francisco José Viegas, na sua coluna de crítica do mundo da restauração na NS' de 28 de Julho, afirma, a propósito do fabuloso Pereira, em Cascais, que «o mundo ainda não está totalmente perdido». Acontecimentos que presenciei e protagonizei hoje levam-me a concluir que, apesar de concordar com FJV na essência da sua afirmação, será talvez mais sábio reformular a frase para «o mundo já esteve mais longe de estar totalmente perdido.»
Pouco passava das nove e meia da manhã quando, à saída do Metro, corrijo, ainda dentro do túnel de saída do Metro, me preparava para ultrapassar um casal de jovens muito loiros. Ele misturava o couro cabeludo de um surfista com o cabedal de um jogador de râguebi, e não teria mais do que 20 anos; ela claramente estava sub-vestida dada aquela hora da manhã (ainda que considerando o calor) e era mais nova talvez em 2 anos. Os dois aparentavam ser estudantes do externato que há ali perto, aquelas escolas privadas destinadas a subir a média do secundário aos estudantes calões, que pagam por valor, por disciplina. Apesar de estar com os auriculares do iPod no sítio para onde foram concebidos, não deixei de ouvir o que se passou a seguir. Subitamente pararam os dois, ou parou ela primeiro, forçando-o a parar e a voltar para trás. Não ouvi a conversa que os levou até àquele ponto - relembro que estava a ouvir música - mas o grito que ela deu foi bastante perceptível: «Estúpido!» A bem da verdade deveria perder algum tempo a descrever o tom com que isto foi dito, pois acho que é mais relevante para o desenrolar da história do que o significado da palavra em si, mas infelizmente falta-me o fôlego. O mesmo tom foi usado por ele, não tinha passado um segundo, no seu contra-ataque: «Puta!». Indiferentes às outras pessoas que partilhavam com eles aquele túnel (sendo nove e meia da manhã não eram poucas), continuaram a trocar argumentos - estúpido! - e pontos de vista - puta! - até os deixar de ouvir. A saída do Metro fica no trajecto que liga o café para onde me dirigi e o meu local de trabalho, pelo que quanto passei de novo pelas escadas que dão acesso ao túnel, reparei que o casal ainda ali estava, talvez há dez minutos, e que o conteúdo da sua conversa não tinha mudado. Era ele que falava e tinha agora entrado nos diminutivos, embora não carinhosos: «Ai minha puta, minha puta, minha putinha».
O senhor que me calhou à frente na fila do supermercado, já ao fim do dia, tinha idade para ser meu avô, ou pelo menos não escandalizaria assim fosse. Segurava um conjunto de 6 pacotes de leite, um saco com fruta, e mais qualquer coisa que não identifiquei. A fila era relativamente longa dada a exiguidade do espaço, e avançava lentamente. A dada altura, o senhor teve de abrir a mala que tinha consigo por motivos que só o interessavam a ele. Pousou o que segurava no chão, pois os movimentos necessários para abrir e fechar a mala requeriam a atenção de ambas as mãos. Como percebeu que essa actividade poderia atrasar o andamento da fila, convidou-me a passar à frente, convite a que acedi por não saber das suas intenções com a mala. Veio a revelar-se apenas uma consulta fugaz, e rapidamente o senhor estava de volta a posição de espera na fila. Quando me apercebi disto, que foi imediatamente pois tinha-me deixado em alerta, sugeri que o lugar que eu deveria ocupar na fila era o original, ou seja, imediatamente atrás do contemporâneo dos meus avós. O que se seguiu foi uma troca de pontos de vista discordantes sobre as nossos respectivas posições, discussão amigável que acabou com a minha derrota: cedi à amabilidade do meu companheiro de fila e deixei-me ficar à sua frente, com a consciência tranquilizada pela escassez daquilo que me preparava para comprar. A fila era única para duas caixas, ou assim o pensávamos os dois - pois o seu argumento final para me convencer a permanecer à sua frente foi o de que, e cito, havia «duas caixas». Imediatamente depois disto dois homens, mais novos, bastante mais novos, mostraram que discordavam desta nossa conclusão e precipitaram-se para a caixa da esquerda, não nos deixando outra alternativa que não esperar pacientemente a nossa vez na caixa da direita. Não sei porque não disse nada, mas a verdade é que a situação me incomodou, sobretudo porque tornou evidente que o exemplo de civismo que eu acabara de receber do simpático velho representara um modo de estar que cada vez colhe menos adeptos, e que, mais grave, parece que só prejudica quem o segue.
Durante a cena no supermercado veio-me à cabeça a cena no Metro, e tudo isto me entristeceu. «Houvesse mais velhos», não pude deixar de pensar, «que se lixe a sustentabilidade da segurança social.» Por isso é que acho que o mundo já esteve mais longe de estar perdido. Mesmo que frequentemos mais assiduamente o Pereira, se isso não se nos apresentar como um acto desesperado de hedonismo selvagem por parte de alguém a quem lhe foi revelado o iminente apocalipse.