segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
Ao fundo, D. Sebastião
Ao homem pacato é negado o luxo de não comemorar a «passagem de ano», de se deixar ficar quieto a olhar pela janela (na imagem: da janela, no meu outro blogue). Para isso o homem pacato teria de ser também um homem sem amigos, sem telefone, recolhido num canto esquecido da geografia, tão esquecido que nem está assinalado nos tomtoms. Como o homem pacato está inserido numa rede social, uma comunidade de pessoas de maioria não pacata, a recusa a convites para champanhe e passas - geralmente com muitos desconhecidos à mistura, nas passagens de ano há sempre muitos desconhecidos, gente que não conhece a nossa cara e que portanto está disposta a acreditar que o ano que se inicia trará «tudo de bom» para nós - é geralmente mal interpretada. Dia 1 de Janeiro é feriado, dia mundial da Paz, com maiúscula, numa escolha acertadíssima por parte de quem escolhe os feriados - haverá alguma Alta Autoridade para o efeito? A Paz, o sossego, o silêncio, uma ideia de continuidade versus esta ideia de ruptura total - não há quem não exclame que «este ano vai ser tudo diferente» - é uma ideia que agrada mais ao homem pacato, que apenas deseja um ano igualmente bom ao que passou, não pior, não melhor. Porque quem habitualmente junta os desejos de transformação ao champanhe só pode ser um homem pessimista, incapaz de acreditar num futuro melhor quando está sóbrio, que desconfia do mundo real e que se refugia na irrealidade do fogo de artifício desfocado pelo Raposeira. Dia 1, dia mundial da Paz, quanto tudo o que sobra da folia da noite passada é uma cefaleia filha da puta, já nada se apresenta com a mesma auréola divina, já tudo voltou ao mesmo de sempre, o mesmo de sempre de que pretendemos fugir, para onde?, ninguém sabe, bebe mais um copo, irmão. O mesmo de sempre que é exactamente aquilo que o homem pacato desejou mas a quem ninguém deu ouvidos. Ao homem pacato é exigido - exigem-lhe - que comemore a «passagem de ano», coisa de que desconfia: afinal, o que há para comemorar se um ano bom chegou ao fim e está aí à porta um ano desconhecido?