domingo, 14 de dezembro de 2008

Carrilho da Graça e o Prémio Pessoa

O Prémio Pessoa é o reflexo de uma certa atitude apaziguadora da sociedade portuguesa, sempre disponível para acarinhar os grandes consensos nacionais (como foi o caso de Manoel de Oliveira, por exemplo.) Como não poderia deixar de ser, o ecletismo é nota dominante nesta espécie de redução ao mínimo denominador comum do mérito. No caso do Prémio Pessoa, o mérito cultural. Uma rápida constulta à lista de laureados (uma péssima palavra) prova essa dispersão de resultados inócuos. Afinal, o que se está a premiar? Sem a definição clara de objectivos, sem a concentração numa determinada área, o que se premeia - julgo - é um suposto reconhecimento da «sociedade» em relação a uma figura cuja obra todos mais ou menos desconhecem mas cujo nome já aprenderam a reconhecer. Há, a acrescentar a isto, uma vontade de premiar pessoas ainda no activo, como estímulo ao restante do seu percurso profissional. 2008 voltou a escolher a arquitectura na pessoa de João Luís Carrilho da Graça [1952], e este texto tenta explicar a justeza dessa escolha.

Desde os anos 80 que o panorama cultural português tem vindo a incorporar a hermética disciplina da arquitectura na lista de actividades a acompanhar, e nem sempre os resultados têm sido os melhores. A principal vítima foi a própria arquitectura: os holofotes do mediatismo tornaram-na vaidosa e descuidada. Podemos até traçar a linha geracional - nos anos 80 - que separa claramente a obra dos arquitectos formados antes e depois da idade da consciência mediática. Para todos os efeitos, João Luís Carrilho da Graça representa um dos últimos casos pré-corrupção, ainda que tenha sabido gerir e tirar proveito, com alguma mestria, desta nova condição da arquitectura. É, acima de tudo, um puro, ou alguém que ambiciona a pureza. Não uma pureza formal que contaminou a geração posterior (liderada com pompa e circunstância por Manuel Aires Mateus [n. 1963], 11 anos mais novo) mas uma pureza de intenções radicalmente alicerçada na cartilha do movimento moderno. Se Eduardo Souto de Moura [n. 1952] - o único arquitecto premiado com o Pessoa até aqui (em 1998), curiosamente nascido no mesmo ano que Carrilho da Graça - representou a entrada de rompante da tradição de Mies van der Rohe («menos é mais») em Portugal, fazendo a correcta adaptação ao contexto do norte do país sobretudo através do muro de pedra, Carrilho da Graça é o mais competente herdeiro da tradição de Corbusier e da linguagem do «Estilo Internacional». 

O incontornável Álvaro Siza [n. 1933] desde cedo se deixou seduzir mais pela obra de Alvar Aalto - por esse modernismo já revisto e corrigido - e até pela segunda idade de Corbusier (depois da descoberta do tropicalismo) do que pelo cânone de aspiração internacionalista do movimento moderno, e com isso condicionou a história da arquitectura da chamada «escola do porto». Em Lisboa as coisas evoluiram mais livremente; a geração de Carrilho da Graça passou pelas mãos de Manuel Vicente (há que mencioná-lo) no último ano da faculdade, e, talvez motivados pela anarquia emocional de Vicente, foi cada um para seu lado. Graça Dias, amigo e contemporâneo de Carrilho da Graça (há quem esteja permanentemente a confundir os dois «Graças») não podia representar um universo formal mais distinto, por exemplo, mais herdeiro de Manuel Vicente, não recusando nem Taveira nem Távora (uma espécie de António Varioções da arquitectura portuguesa: enquanto que o músico trouxe Nova Iorque para Braga, Graça Dias quis trazer Macau para Chaves). Carrilho da Graça decidiu-se pelo caminho mais «modernista» que levou, inevitavelmente, a uma obra bem menos influencidade por «Portugal» do que os seus contemporâneos do norte do país. Talvez a obra a quem Carrilho da Graça mais deva seja a de Gonçalo Byrne [n. 1941], mas rapidamente a superou fazendo contrastar a sua ambição mais lírica à erosão do estilo de Byrne, que tem vindo a perder coerência formal em prol de uma ambição de «fazer cidade». Este prémio dado a Carrilho da Graça veio reforçar a ideia de que a expressão cultural da arquitectura ainda se faz sobretudo à custa do desenho que ambiciona à arte; quer Carrilho da Graça quer Souto de Moura são exímios criadores de objectos arquitectónicos, menos interessados no fenómeno urbano. É uma opção altamente discutível (a do júri do Pessoa) mas que se entende: à arte é exigido que emocione, e é esse que tem de ser o caminho da arquitectura se quer ser arte. A obra de Carrilho da Graça emociona pela sua procura da leveza, da imaterialidade, da pureza do «espaço» (uma ideia hiper-modernista), do acerto pela simplicidade do gesto, por uma dimensão quase musical e por isso bastante abstracta. O que é a sua força também é a sua fraqueza: esta abstração representa uma certa fobia - quase higiénica - em relação ao contexto português. 

Talvez falte à obra de Carrilho da Graça uma inscrição colectiva; dois ou três aprendizes dispostos a fazer escola que legitimem os seus gestos, que façam do seu percurso um percurso geracional e não só individual. O mediatismo da arquitectura que explodiu nos anos 80 formou uma geração de arquitectos mais interessados em ser publicados numa revista coreana do que em aprender com os mais próximos. Por isso, a obra de Carrilho da Graça ficará talvez para a história tão solta do chão como alguns dos seus edifícios, e isso é pena.