O carácter traumático da adolescência é um dado mais ou menos consensual para as pessoas normais, que crescem e arranjam empregos e têm de continuar a viver sem poder apagar tudo aquilo que se passou entre a puberdade e uma data que varia conforme cada um. À excepção dos consultores empresariais (nunca conheci nenhum que acusasse o toque), a adolescência é aquela fase da vida onde demasiadas coisas se definem sem rede, a maioria delas fugindo à nossa vontade, à boleia da «experiência», essa maldita, que vai gravando sem a nossa permissão dados novos na nossa
tábua rasa, deixando-a irremediavelmente tatuada para a eternidade. E de onde vem o peso da adolescência? Simples: ela nasce da dificuldade que os homens (por oposição às mulheres) têm de decretar o fim da dita, que, como sabemos, só morre com o casamento (até prova em contrário, o melhor antídoto). Contra o domínio anunciado desse fantasma sobre a nossa vida, o remédio passa por um processo quase bélico de afronta a esse exército de assombrações. Esse processo é dificílimo e é necessário assumi-lo com frontalidade, entrar no carrinho do comboio fantasma de olhos abertos, e não recear a chicotada. O livro de crónicas do
Pedro Mexia Nada de Melancolia (apresentado ontem numa bonita festa no Incógnito) representa, em parte, essa catarse emocional obrigatória. O Pedro Mexia volta ao local do crime, munido de armas poderosas - idade adulta, clareza argumentativa, prosa elegante, hormonas ligeiramente mais pacificadas -, e enfrenta o baú com coragem e dedicação. Apesar do título, há ali melancolia, evidente, mas que surge apenas como a namorada do amigo: só lá está porque convidámos o amigo. No fundo, estas crónicas representam uma espécie de arrumar de casa: a adolescência estava ali desarrumada pelas gavetas da sala e foi preciso pegar nela, empacotá-la, e arrumá-la num caixote na cave, catalogada e arejada para futuras consultas. Pelo caminho, o Pedro Mexia levou toda uma geração atrás de si, emocionada e entusiasmada com esta carta de amor a uma geração ainda relutante em deixar morrer a adolescência mas um pouco assutada em deixá-la andar pelos corredores sozinha. O processo foi uma espécie de bomba de fragmentação emocional, pacifista, sem vítimas. O que não mata engorda, e a verdade é que estamos todos um pouco mais gordos.
Enfim, começou a chover em Matosinhos, o terreno vai alagar, e tenho medo que isso prejudique o futebol do Aimar.
P.S: Acabo de perceber que o Miguel Esteves Cardoso diz no prefácio: «Mas o Pedro Mexia jamais poderia ter armas. Toda a terminologia bélica do costume (...) é grosseira de mais para descrever o que a escrita dele faz.» Mas isto é só a opinião do Miguel Esteves Cardoso.