sábado, 27 de dezembro de 2008
Chiuauas e pedigrees
A Sic-Notícias acabou de transmitir um documentário sobre o perverso mundo da criação e apuramento de cães de raça. Não é preciso ter as cotas em dia da ANIMAL para que uma pessoa se emocione com isto. A história conta-se em poucas linhas. Em meados do século XIX a classe média vitoriana desenvolveu um gosto estético sobre os cães e descobriu que era divertido organizar competições com os melhores exemplares de cada raça. Os cães, que essencialmente existiam para desempenhar determinadas funções (caçar, guardar, acompanhar), passaram a existir para agradar aos olhos (o que, enfim, também parece ser verdade com alguns exemplares da espécie humana). Nos cães o drama foi inevitável e a procura da perfeição estética (leia-se a aproximação aos padrões estabelecidos por uma entidade estranha - o homem) não reconheceu obstáculos: se se quer o cão com o nariz empinado, então cruzem-se cães de nariz empinado, independentemente das suas relações de consanguinidade. Era como se as Nações Unidas (uma entidade estranha) decretasse a Angelina Jolie, o Brad Pitt e a respectiva rescendência como reprodutores oficiais da espécie, à luz de um conjunto de parâmetros estéticos considerados «ideais» (uma ideia sem contestação em Brangelina). A nós restar-nos-ia apaudir e pontuar. O resultado no mundo canino foi o esperado: doenças genéticas, anormalidades anatómicas, deformações físicas absurdas (particularmente eficaz a comparação entre dois exemplares da mesma raça separados por apenas cem anos.) Não se pense que eu estou a equiparar o cão ao homem; longe disso. Aos meus olhos a aberração maior não está no focinho inexistente do buldog, está na massa encefálica inexistente dos criadores. É-me particularmente indiferente que um cão nasça sem uma perna, mas não posso ficar insensível ao facto de se gastar no Reino Unido 10 milhões de libras semanais a tratar animais domésticos doentes devido a insuficiências genéticas provocadas pela pontuação dos certames de fim-de-semana. Há qualquer coisa na maneira como tratamos os animais que reflecte a maneira como nos tratamos a nós próprios - a relação que os donos de animais domésticos mantêm com os mesmos é evidente nesse aspecto. O que devemos aprender com o exemplo dos cães de raça não é a condenação da ideia de apuramento da espécie (Darwin já nos resolveu essa questão há muito tempo); é o perigo que resulta de retirarmos aos indivíduos a capacidade de fazer as necessárias escolhas através de imposições exteriores. A ideia de haver uma entidade, digamos, a título de exemplo, sediada em Bruxelas, que estabeleça padrões estéticos sobre a natureza, digamos, a título de etc etc, a «dimensão média do pénis» ou o «aspecto padrão de um pimento», já pareceu mais do domínio da ficção científica do que parece hoje. A ideia que podemos predeterminar os aspectos estéticos da nossa existência é tentadora e tem merecido teses relativamente convincentes no domínio da ficção científica. Mas não só, e poderíamos recorrer à biografia de Josef Mengele como bibliografia. O perigo, evidentemente, não parece estar na hipótese de alastramento de uma ideia de apuramento estético da espécie, mas mais num cenário onde o apuramento estético surge como consequência de outro tipo de manipulação mais benigno, por exemplo o combate à doença. Seja como for, a beleza parece ser um fruto proibído e a sua procura activa terá sempre um preço a pagar. Esta não é apenas uma ideia religiosa.