terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Patético*

O senhor responsável pela página Quadro de Honra da revista Dia D (suplemento de qualidade do Público de segunda-feira) achou por bem ilustrar uma pequena nota que fez relativa ao elevado número de pessoas que adquirem «deficiências auditivas devido às suas actividades laborais», com esta imagem:



Vamos partir do princípio que, de facto, aquele pano branco à volta da cabeça deste senhor obviamente surdo é uma indicação sobre a sua, óbvia, surdez. Vamos partir do princípio que, à semelhança do que se passa com os cegos e os óculos escuros, que, como sabemos, é uma associação impossível de falhar, ou seja, sempre que um indivíduo por nós passa na rua envergando um par de lentes corta-sol assola-nos logo aquele sentimento misto de culpa e compaixão para quem infelizmente é detentor de uma deficiência física extremamente aborrecida, dizia, partiremos então do princípio que o facto de esta figura aqui retratada ostentar um pano sobre a orelha só pode significar que não tem a capacidade de ouvir. Vamos, inclusivé, partir do princípio que nos deverá saltar ao conhecimento imediatamente ao vermos esta imagem que este senhor é surdo. Iremos, posto isto, partir do princípio que esta é uma imagem neutra, simples, que terá sido produzida por um qualquer designer estagiário para ilustrar uma campanha a favor das vítimas da surdez, ou seja, dos surdos. Trocando por miúdos, vamos partir do princípio que todos nós somos capazes de, ao mirar prostrados esta maravilhosa escolha de ilustração, proceder ao mecanismo de raciocínio que nos levará no seguinte caminho: imagem - pano - orelha - surdez, assim, sempre em frente, sem medos. Ora, partindo do princípio que isto tudo faz sentido, será que é suposto ignorarmos que estamos perante um auto-retrato de Van Gogh e que aquele pano branco não, não é um sinal alusivo à sua surdez, mas o resultado trágico da sua instabilidade psíquica que foi responsável por um célebre ataque de auto-mutilação que levaria o artista holandês a cortar a sua própria orelha aos 23 dias de Dezembro de 1888, em Arles**?

* No tal Quadro de Honra esta nota aparece, ironia ironia, junto ao infinito imaginário do eixo do referencial com esta denominação.

** É que se não é suposto ignorarmos esta pequena informação, de que forma deveremos relacioná-la com, relembro, as pessoas que adquirem «deficiências auditivas devido às suas actividades laborais»? Ora, só podemos imaginar, e estando nós conscientes da «actividade laboral» de Van Gogh, será que o nosso amável jornalista nos quis implicitamente sugerir toda uma imagética envolvendo pincéis e (aqui está a subtileza) um novo
meio de pintura, avançando quiçá com uma alternativa natural aos óleos e acrílicos?