Estou em casa de um amigo a celebrar a coisa. Há garrafas por aqui e por ali. Há também não um, mas dois PCs ligados e on-line. Fica o aviso: há sérias possibilidades de aparecer por aqui alguns textos escritos sob influência de certas e determinadas substâncias. Não é o caso deste. Bolas, ainda nem são nove da noite.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2004
ano novo vida velha
Percebo que não quero desejar nada de extraordinário para 2005. Talvez seja por isso que nunca tenha gostado particularmente dos rituais de passagem de ano. Para já irrita-me a expressão mais usada por estes dias: «onde vais passar a passagem de ano?» Passar a passagem? Poupem-me. Não me toca também aquele sentimento de pessimismo da passagem de ano. Pessimismo?, pergunta o leitor, mas então não é o optimismo o sentimento associado ao «ano novo»? Não, não é. O optimismo não é mais do que um estado de negação do pessimismo. Pela experiência sabemos que vamos chegar ao final de 2005 a pensar ainda bem que vem aí 2006. Tal e qual como agora. Por um lado isso explica a euforia generalizada pelo fenómeno: a passagem de ano é o único momento em que não nos podemos lamentar de nada. O ano que acaba de findar já lá vai; e o que acaba de chegar ainda não nos ofereceu nada para além de alcóol e passas. É o momento exacto para inventarmos um optimismo inexistente, porque o estado de regret começará logo no dia seguinte. Puta de ressaca.
Tal como o FNV, o que eu queria é que o ano novo fosse igual ao velho. Já não era nada mau, nada mau mesmo.
Tal como o FNV, o que eu queria é que o ano novo fosse igual ao velho. Já não era nada mau, nada mau mesmo.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2004
A10
Acabo de receber o primeiro número da nova A10. Sim senhora, gostei e tal, a presença portuguesa nesta «nova europa» recomenda-se. Lá para o meio aparece um texto, sobre a Biblioteca da Universidade dos Açores (a.s*), assinado pelo Pedro Jordão. O design é simples e apelativo, as imagens abundam. Como esforço para divulgar a new European architecture parece valer a pena. Só estou para descobrir como veio cá parar a casa, já que eu não me lembro de ter concluído o processo de assinatura, muito menos de ter pago alguma coisa por isto.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2004
2004: O ano da arquitectura
2004 foi fértil em acontecimentos arquitectónicos. Aqui fica uma possível revista:
1. Os estádios do Euro-2004
O resultado global podia ter sido melhor. O Estádio de Braga valeu justamente o Secil a Souto Moura. Ali agarrou-se a oportunidade para fazer uma reflexão sobre o estádio moderno, como por exemplo a supressão das bancadas de topo (que oferecem um ângulo de visão bastante diferente do televisivo, logo menos apelativo), ou a imensa cobertura aberta, «à Siza» como lhe chamou Souto Moura. Ao mesmo tempo é um estádio que vai buscar as suas referências ao Teatro Grego, no modo como usa a topografia e a vegetação (as árvores de proscenio que estão por crescer atrás da baliza que se abre ao céu.) O Estádio de Braga foi, por si, o grande acontecimento do ano. Dos restantes, nota para a intervenção urbana feita nas Antas: mais do que o estádio (limpo, bonito, corrente), aproveitou-se a oportunidade para uma profunda transformação da área, com a introdução de novas referências urbanas (o Parque, a Avenida). Dos restantes, nota para os azulejos de Alvalade, o colorido de Aveiro e Leiria (todos de Tomás Taveira), e para o fecho do Estádio do Bessa, uma caixa paralelipipédica enfiada num tecido urbano apertado, e para o trabalho competente realizado em Guimarães.
2. As Torres
2004 foi também o ano do regresso (ou continuação) da discussão sobre a construção em altura. Deve-se este facto sobretudo à proposta de Álvaro Siza para Alcântara, entretanto já abandonada. Também Norman Foster se juntou à festa com a proposta para a área do aterro da Boavista, com o seu Quarteirão do Design, a sua analogia foleira com a praça de S. Marcos e a sua torre de 100 metros de altura. Foi também publicada a tese de mestrado de José Romano, EDIFICIOS EM ALTURA, FORMA ESTRUTURA, um importante contributo para a discussão.
3. Gehry e os projectos-estrela
A reboque do Parque Mayer lançou-se o tema dos grandes projectos de autores-estrela, membros do star-system internacional. O modo como Frank Gehry foi sendo apresentado nos media nacionais abriu precedentes que por certo vão ser aproveitados no futuro pelas mais diversas entidades (públicas ou privadas) no sentido de fazerem aprovar as suas iniciativas. Em Lisboa, além do já citado Foster, contam-se também projectos de Jean Nouvel (em Alcântara), de Renzo Piano (em Braço de Prata) e da OMA (a Casa da Música).
4. A Casa da Música
É difícil falar da Casa da Música como um evento de 2004: já vem de antes e não acabou ainda. No entanto, 2004 foi ano da concretização do projecto da OMA: as paredes inclinadas cresceram, confirmaram o entusiasmo dos mais crentes e os receios dos seus detractores. Colocada no ponto central do Porto, a rotunda da Boavista, a Casa da Música assume-se como uma referência à escala da cidade, pela sua singularidade e qualidade. Pena que não se tenha protegido a obra se tenha permitido a (futura) construção de um edifício de escritórios, sem história, colado ao terreno da Casa da Música.
5. A Experimenta-Design
Na arquitectura a Experimenta promoveu a divulgação dos projectos dos Silos Automóveis para Lisboa (com uma sigla muito arquitectónica, SAL). Tema essencial numa cidade como Lisboa, os Silos tornaram-se, talvez estranhamente, numa oportunidade para a elaboração de vários projectos arriscados e experimentais. Se atentarmos ao facto de os silos serem estruturas puramente utilitárias e potencialmente desinteressantes, não deixa de surpreender (pela positiva) a qualidade das propostas apresentadas.
6. A iniciativa do Público
(11) Arquitectos Portugueses Contemporâneos, assim se chamou a colecção de fascículos editados pelo jornal Público. Projecto coordenado por Ana Vaz Milheiro, Ricardo Carvalho e Jorge Figueira (os críticos do jornal) foi um acontecimento pioneiro ao nível da divulgação para o grande público.
7. O 73/73
Anunciada a sua revogação, o decreto de lei continua vigente. Até quando?
8. O Concurso para o Museu de Foz Côa
Ganho por uma dupla de jovens arquitectos, Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, ambos oriundos do Porto e com a escola de Souto Moura.
9. A reeleição de Helena Roseta
Sem lista opositora. Na cerimónia de tomada de posse, Helena Roseta apresentava no casaco uma rosa cor-de-rosa.
Esta uma lista informal, totalmente improvisada, e obviamente sujeita a actualizações nos próximos tempos. Aceitam-se sugestões.
1. Os estádios do Euro-2004
O resultado global podia ter sido melhor. O Estádio de Braga valeu justamente o Secil a Souto Moura. Ali agarrou-se a oportunidade para fazer uma reflexão sobre o estádio moderno, como por exemplo a supressão das bancadas de topo (que oferecem um ângulo de visão bastante diferente do televisivo, logo menos apelativo), ou a imensa cobertura aberta, «à Siza» como lhe chamou Souto Moura. Ao mesmo tempo é um estádio que vai buscar as suas referências ao Teatro Grego, no modo como usa a topografia e a vegetação (as árvores de proscenio que estão por crescer atrás da baliza que se abre ao céu.) O Estádio de Braga foi, por si, o grande acontecimento do ano. Dos restantes, nota para a intervenção urbana feita nas Antas: mais do que o estádio (limpo, bonito, corrente), aproveitou-se a oportunidade para uma profunda transformação da área, com a introdução de novas referências urbanas (o Parque, a Avenida). Dos restantes, nota para os azulejos de Alvalade, o colorido de Aveiro e Leiria (todos de Tomás Taveira), e para o fecho do Estádio do Bessa, uma caixa paralelipipédica enfiada num tecido urbano apertado, e para o trabalho competente realizado em Guimarães.
2. As Torres
2004 foi também o ano do regresso (ou continuação) da discussão sobre a construção em altura. Deve-se este facto sobretudo à proposta de Álvaro Siza para Alcântara, entretanto já abandonada. Também Norman Foster se juntou à festa com a proposta para a área do aterro da Boavista, com o seu Quarteirão do Design, a sua analogia foleira com a praça de S. Marcos e a sua torre de 100 metros de altura. Foi também publicada a tese de mestrado de José Romano, EDIFICIOS EM ALTURA, FORMA ESTRUTURA, um importante contributo para a discussão.
3. Gehry e os projectos-estrela
A reboque do Parque Mayer lançou-se o tema dos grandes projectos de autores-estrela, membros do star-system internacional. O modo como Frank Gehry foi sendo apresentado nos media nacionais abriu precedentes que por certo vão ser aproveitados no futuro pelas mais diversas entidades (públicas ou privadas) no sentido de fazerem aprovar as suas iniciativas. Em Lisboa, além do já citado Foster, contam-se também projectos de Jean Nouvel (em Alcântara), de Renzo Piano (em Braço de Prata) e da OMA (a Casa da Música).
4. A Casa da Música
É difícil falar da Casa da Música como um evento de 2004: já vem de antes e não acabou ainda. No entanto, 2004 foi ano da concretização do projecto da OMA: as paredes inclinadas cresceram, confirmaram o entusiasmo dos mais crentes e os receios dos seus detractores. Colocada no ponto central do Porto, a rotunda da Boavista, a Casa da Música assume-se como uma referência à escala da cidade, pela sua singularidade e qualidade. Pena que não se tenha protegido a obra se tenha permitido a (futura) construção de um edifício de escritórios, sem história, colado ao terreno da Casa da Música.
5. A Experimenta-Design
Na arquitectura a Experimenta promoveu a divulgação dos projectos dos Silos Automóveis para Lisboa (com uma sigla muito arquitectónica, SAL). Tema essencial numa cidade como Lisboa, os Silos tornaram-se, talvez estranhamente, numa oportunidade para a elaboração de vários projectos arriscados e experimentais. Se atentarmos ao facto de os silos serem estruturas puramente utilitárias e potencialmente desinteressantes, não deixa de surpreender (pela positiva) a qualidade das propostas apresentadas.
6. A iniciativa do Público
(11) Arquitectos Portugueses Contemporâneos, assim se chamou a colecção de fascículos editados pelo jornal Público. Projecto coordenado por Ana Vaz Milheiro, Ricardo Carvalho e Jorge Figueira (os críticos do jornal) foi um acontecimento pioneiro ao nível da divulgação para o grande público.
7. O 73/73
Anunciada a sua revogação, o decreto de lei continua vigente. Até quando?
8. O Concurso para o Museu de Foz Côa
Ganho por uma dupla de jovens arquitectos, Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, ambos oriundos do Porto e com a escola de Souto Moura.
9. A reeleição de Helena Roseta
Sem lista opositora. Na cerimónia de tomada de posse, Helena Roseta apresentava no casaco uma rosa cor-de-rosa.
Esta uma lista informal, totalmente improvisada, e obviamente sujeita a actualizações nos próximos tempos. Aceitam-se sugestões.
aviso:
Nunca, em situação alguma, fazer negócios sob o aperto de uma necessidade fisiológica, por exemplo, de ordem urinária ou estomacal. O bom-senso, a calma e a concentração necessários ficarão seriamente ameaçados. Há que estar em harmonia com os elementos se não queremos estar em desarmonia com a carteira.
Feias Artes
quando o ódio cega
No Rua da Judiaria:
«Em momentos de tragédia e necessidade, habitualmente os países colocam de lado as divergências e congregam esforços para a ajuda humanitária. Israel, por exemplo, esteve entre os primeiros a oferecer auxílio aos países do sudoeste asiático afectados pelo terremoto e maremoto de segunda-feira.
Mas é também hábito que estas coisas nunca sejam assim tão simples. O Sri Lanka, provavelmente o país mais afectado, recusou a oferta do governo israelita (ver também BBC - Sri Lanka rejects Israel rescuers), que se disponibilizara para enviar uma equipa de 150 especialistas preparada para montar hospitais móveis, equipados com unidades de emergência, pediatria, radiologia e laboratórios.
A situação é profundamente triste, mas nada disto é novidade. Há exactamente um ano, quando um terremoto de grande escala matou cerca de 20 mil pessoas em Bam, no Irão, grupos humanitários israelitas contaram-se entre os primeiros a oferecer ajuda. Mas o governo iraniano, abrindo os braços perante a gratidão do mundo, anunciou de imediato que estava pronto a receber ajuda humanitária de todos os países – mas que era melhor os seus cidadãos morrem nos escombros do que serem salvos por judeus.
Nada é mais triste do que ver o ódio sobrepor-se à necessidade. Uma vez mais.»
terça-feira, 28 de dezembro de 2004
Susan Sontag (1933-2004)
«None of us can ever retrieve that innocence before all theory when art knew no need to justify itself, when one did not ask of a work of art what it said because one knew (or thought one knew) what it did.»
in Against Interpretation
in Against Interpretation
segunda-feira, 27 de dezembro de 2004
criar pistas para a compreensão da disciplina
«Um texto sobre arquitectura, num semanário de grande tiragem como o Expresso, obrigado ao figurino mais ou menos fixo de caracteres, será, como eu o entendo, primeiro que tudo, uma tentativa - a pretexto da exposição de uma obra e do respectivo autor - de criar pistas para a compreensão da disciplina.»
Manuel Graça Dias, in 30 Exemplos, (Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX)
A Relógio de Água volta a publicar Graça Dias. Desta vez é a colectânea dos seus textos publicados no Expresso, em regime de alternância quinzenal com José Manuel Fernandes. Sempre me cativou esta capacidade de falar sobre arquitectura com palavras não técnicas, com um discurso fluente e descodificado, que Graça Dias tão bem faz. A crítica/divulgação da arquitectura na imprensa não-especializada em Portugal é quase inexistente, o que se torna particularmente preocupante devido ao facto de a arquitectura ser uma actividade pública extremamente complexa que urge clarificar ao olhos da opinião pública. Os textos reunidos neste livro são um bom exemplo daquilo que se deveria multiplicar.
Manuel Graça Dias, in 30 Exemplos, (Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX)
A Relógio de Água volta a publicar Graça Dias. Desta vez é a colectânea dos seus textos publicados no Expresso, em regime de alternância quinzenal com José Manuel Fernandes. Sempre me cativou esta capacidade de falar sobre arquitectura com palavras não técnicas, com um discurso fluente e descodificado, que Graça Dias tão bem faz. A crítica/divulgação da arquitectura na imprensa não-especializada em Portugal é quase inexistente, o que se torna particularmente preocupante devido ao facto de a arquitectura ser uma actividade pública extremamente complexa que urge clarificar ao olhos da opinião pública. Os textos reunidos neste livro são um bom exemplo daquilo que se deveria multiplicar.
Oscar
Via Aviz descubro esta pérola no puragoiaba:
«Oscar Niemeyer, ilusionista, é um escultor que passou a vida fingindo, com sucesso, ser arquiteto. Acredita que a casa perfeita é totalmente inabitável pelo ser humano, coisa desprezível que só serve para macular a beleza dos seus desenhos (vale o mesmo para Brasília, cidade perfeita projetada por ele e imune a qualquer coisa que cheire vagamente a humanidade). Odeia a natureza e acha que mato só existe para ser desbastado e coberto de concreto. Ama bigodes gigantes e rampas, parafilias pouco estudadas pela ciência. Quando não está fazendo rabisquinhos, seu passatempo é assinar abaixo-assinados que não lê: apenas confere se Saramago e Chico Buarque também assinaram. É careca e chato. É também elo perdido com o período jurássico, prova de que vaso ruim não quebra e muso da marchinha "a pipa do Niemeyer não sobe mais".»
E nos comentários a este post encontro esta verdade:
«Todo arquiteto deveria ser condenado a morar no mínimo um ano em suas próprias construções!»
«Oscar Niemeyer, ilusionista, é um escultor que passou a vida fingindo, com sucesso, ser arquiteto. Acredita que a casa perfeita é totalmente inabitável pelo ser humano, coisa desprezível que só serve para macular a beleza dos seus desenhos (vale o mesmo para Brasília, cidade perfeita projetada por ele e imune a qualquer coisa que cheire vagamente a humanidade). Odeia a natureza e acha que mato só existe para ser desbastado e coberto de concreto. Ama bigodes gigantes e rampas, parafilias pouco estudadas pela ciência. Quando não está fazendo rabisquinhos, seu passatempo é assinar abaixo-assinados que não lê: apenas confere se Saramago e Chico Buarque também assinaram. É careca e chato. É também elo perdido com o período jurássico, prova de que vaso ruim não quebra e muso da marchinha "a pipa do Niemeyer não sobe mais".»
E nos comentários a este post encontro esta verdade:
«Todo arquiteto deveria ser condenado a morar no mínimo um ano em suas próprias construções!»
O Regresso da Religião
por Vasco Pulido Valente
A América de Bush, a "América vermelha", tornou a pôr a religião no centro da política contra a "América azul" e, sobretudo, contra a Europa. O desprezo que a Europa sente pela América, que reza na escola, que vai à igreja, que prega a abstinência, que não admite o aborto e que vota Bush, é igual ao que essa América sente pela "velha" Europa secular e pelo seu lento "suicídio demográfico". Não se trata aqui de uma discordância temporária ou acidental. Há uma separação drástica entre uma cristandade militante, como nunca o tinha sido desde meados do século XIX, o secularismo que a nega e o Islão por quem ela se julga, ou de facto está, ameaçada. O homem (ou a mulher), que no Texas acredita na literalidade da Bíblia, na santidade da família, na pena de morte e na guerra justa, não pode aceitar, não pode mesmo tolerar, o europeu (ou nova-iorquino) céptico, agnóstico ou francamente ateu,"egoísta demais para fazer filhos" e, sobretudo, desinteressado de um futuro que não verá e que nada o impele a defender.
Um exemplo. Este Natal, a presença incómoda da "América Vermelha" levou a "Newsweek", a "Time" e até Larry King a falarem longa e seriamente da Natividade, isto é, do nascimento de Cristo. O resultado foi desastroso. Porque, para falar da Natividade, ou se repetem as piedades do costume (em parte inspiradas no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus), coisa que não leva longe, ou se entra numa exegese que destrói a narrativa tradicional. A "Newsweek", a "Time" e Larry King tentaram escolher o meio caminho e naturalmente falharam. As duas visões não são compatíveis. Pior ainda: uma exclui a outra. A exegese transforma o episódio de Belém, da manjedoura, dos reis magos, da estrelinha e por aí fora num acréscimo tardio com intenções de legitimação e propaganda, com datas claramente erradas, com elementos da literatura apologética grega e latina. A "América Vermelha" não ficou com certeza comovida. E a "América Azul" como a "velha" Europa ficaram com certeza confirmadas na sua indiferença. Os dois mundos não comunicam e o exercício só conseguiu mostrar a distância que os separa. Já não existe um Ocidente, existem dois, de novo divididos pela religião.
in Público, 26-12-2004
A América de Bush, a "América vermelha", tornou a pôr a religião no centro da política contra a "América azul" e, sobretudo, contra a Europa. O desprezo que a Europa sente pela América, que reza na escola, que vai à igreja, que prega a abstinência, que não admite o aborto e que vota Bush, é igual ao que essa América sente pela "velha" Europa secular e pelo seu lento "suicídio demográfico". Não se trata aqui de uma discordância temporária ou acidental. Há uma separação drástica entre uma cristandade militante, como nunca o tinha sido desde meados do século XIX, o secularismo que a nega e o Islão por quem ela se julga, ou de facto está, ameaçada. O homem (ou a mulher), que no Texas acredita na literalidade da Bíblia, na santidade da família, na pena de morte e na guerra justa, não pode aceitar, não pode mesmo tolerar, o europeu (ou nova-iorquino) céptico, agnóstico ou francamente ateu,"egoísta demais para fazer filhos" e, sobretudo, desinteressado de um futuro que não verá e que nada o impele a defender.
Um exemplo. Este Natal, a presença incómoda da "América Vermelha" levou a "Newsweek", a "Time" e até Larry King a falarem longa e seriamente da Natividade, isto é, do nascimento de Cristo. O resultado foi desastroso. Porque, para falar da Natividade, ou se repetem as piedades do costume (em parte inspiradas no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus), coisa que não leva longe, ou se entra numa exegese que destrói a narrativa tradicional. A "Newsweek", a "Time" e Larry King tentaram escolher o meio caminho e naturalmente falharam. As duas visões não são compatíveis. Pior ainda: uma exclui a outra. A exegese transforma o episódio de Belém, da manjedoura, dos reis magos, da estrelinha e por aí fora num acréscimo tardio com intenções de legitimação e propaganda, com datas claramente erradas, com elementos da literatura apologética grega e latina. A "América Vermelha" não ficou com certeza comovida. E a "América Azul" como a "velha" Europa ficaram com certeza confirmadas na sua indiferença. Os dois mundos não comunicam e o exercício só conseguiu mostrar a distância que os separa. Já não existe um Ocidente, existem dois, de novo divididos pela religião.
in Público, 26-12-2004
domingo, 26 de dezembro de 2004
o nosso modo de estar
- Qual é o caminho para a felicidade?
- Olhe, o caminho não sei qual é, mas uma coisa lhe posso dizer: se houver buracos nesse caminho são da inteira responsabilidade da anterior autarquia.
in Gato Fedorento
- Olhe, o caminho não sei qual é, mas uma coisa lhe posso dizer: se houver buracos nesse caminho são da inteira responsabilidade da anterior autarquia.
in Gato Fedorento
sábado, 25 de dezembro de 2004
n.i.b.
Não escondo a minha revolta ao ouvir o discurso da perca de significado do Natal, como «os valores» deram lugar ao consumismo desenfreado. Como o Pai Natal suplantou o menino Jesus. Então o ouro, o incenso, e a mirra?
sexta-feira, 24 de dezembro de 2004
isto não vem nada a calhar
O PSD anunciou um acordo pré-eleitoral com o MPT (Movimento Partido da Terra). Isto chateia-me, chateia-me mesmo.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2004
na manhã de Natal
Quando se falava das «casas modernas», aquelas que aparecem nas revistas, onde o mobiliário está em perfeita sintonia estética com a caixilharia, Manuel Vicente costumava perguntar: «Mas gostavas de lá acordar na manhã de Natal?» Fez sentido quando ouvi pela primeira vez, continua a fazer hoje sentido. «Gostavas de lá acordar na manhã de Natal?»
quarta-feira, 22 de dezembro de 2004
porque é que isto tudo me entristece?
As torres do Siza afinal não vão ser construídas. Avança o plano B: um projecto que cumpre o PDM de Sua Kay. Nada que já não se soubesse. Mas era só para avisar. Sai Siza, entra Sua Kay.
a César o que é de César
Daniel, lembro-me de escrever qualquer coisa do género (há já algum tempo, é certo), mas essas palavras (um blogue é uma ilusão, a ilusão de ser lido) foram escritas no Ma-Schamba. Bem, vou à procura do que escrevi sobre isso, pode ser que descubra aqui um plagiozito qualquer, tão em voga hoje em dia (aproveito para endereçar os meus parabéns ao JPT pelo primeiro ano do seu blogue.)
a revolução
Em Portugal os arquitectos ainda não descobriram a internet. Alguns já a utilizam, têm os seus sites, mas geralmente ficam muito aquém do que poderiam ser (consultar a lista que o Daniel compilou). Por isso foi com alguma surpresa que soube da existência do site da S'A arquitectos. O espanto prende-se com o facto de ser um site (oficial) em formato blogue. O que é algo arriscado, sem dúvida, mas que se assume como uma pedra no charco, uma aposta quase sem rede. Espero que se torne num exemplo a seguir.
Histórias para adultos
Paula Rego tem um universo tecnico-formal absolutamente fechado. Exprime-se de uma determinada maneira, que todos sabem já identificar, e não parece interessar-se por mais nada. A razão é simples: Paula Rego tem histórias para contar. Não se deixa fascinar pela pintura em si, não se deixa levar pela atracção do experimentalismo. Por isso o abstracto em Paula Rego seria um absurdo. O seu universo é figurativo e evocativo. As formas humanas parecem ser sempre as mesmas. E se calhar até o são, as formas, porque as formas assumem sempre um papel secundário. Importante são as situações, as relações, os episódios. Paula Rego tem muitas histórias para contar. Histórias (melhor, estórias) violentas, reais, perturbadoras, grotescas. Histórias que precisam que alguém as conte. Paula Rego construiu um universo próprio baseado nesses pequenos argumentos que vai pintando. A pintura, essa, vai ficando cada vez mais igual a si própria. É bom sinal quando os artistas ainda sentem que têm algo a contar.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2004
alguns dias de surrealismo
Parece que chegou ao fim a série 80 Anos de Surrealismo, levada a cabo pelo Luís Raínha no Blogue de Esquerda. Aproveito para agradecer a iniciativa que nos deixou a vontade de saber mais. Será talvez esta a maneira de fazer divulgação artística na blogosfera: com um ritmo diário, textos curtos e concisos, muito links, tudo acompanhado de uma imagem-síntese. Valeu a pena.
A série acabou com James Rosenquist, artista que conheci em Bilbao enquanto tentava desviar-me das curvas torcidas que teimavam em fazer birra e a clamar por atenção. Ficaram-me na memória essas «peças de automóveis», bem como a ideia de «justaposição quase aleatória».
A série acabou com James Rosenquist, artista que conheci em Bilbao enquanto tentava desviar-me das curvas torcidas que teimavam em fazer birra e a clamar por atenção. Ficaram-me na memória essas «peças de automóveis», bem como a ideia de «justaposição quase aleatória».
domingo, 19 de dezembro de 2004
sábado, 18 de dezembro de 2004
friday night
Ontem experimentei o Pavilhão de Portugal alcoolizado (eu, não o pavilhão). Uma epifania.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2004
Espaço público
Ontem, no Blasfémias, dizia LR:
«Em Portugal e em qualquer outro País, os edifícios mais faustosos, monumentais, emblemáticos, de traça arquitectónica ímpar, foram construídos pelo Estado ou pela Igreja. Porque será???»
LR desenvolveu depois a ideia na (interessante) discussão que se gerou na caixa de comentários:
«Ou seja, os edifícios grandiosos, faustosos, emblemáticos foram construídos principalmente pelo Estado e pela Igreja porque estas foram desde sempre as únicas instituições às quais não se colocava o problema de escassez ou de custo dos recursos: sempre os obtiveram de forma duradoura e mais ou menos coerciva. O objectivo na construção nunca teve a ver com critérios de satisfação de necessidades específicas ou de rentabilidade, mas sim de demonstração de poder.
Como tu dizes, hoje os edifícios mais notáveis (eu diria mais demandados) são os centros comerciais. Os privados constroem-nos e continuarão a fazê-lo enquanto tal lhes for benéfico. Mas nenhuma instituição privada construiria alguma vez o CCB ou a Casa da Música...»
Em primeiro lugar não acho que os edifícios mais notáveis sejam os centros comerciais. É absurdo dizer isso. Por uma razão fundamental: são maus. Não conheço um único centro comercial que tenha tornado Lisboa ou o Porto (por exemplo) num sítio melhor para viver.
Há uma frase de LR que considero exemplificativa da diferença de opiniões que temos: «Mas nenhuma instituição privada construiria alguma vez o CCB ou a Casa da Música...» Isso é mau ou bom? O CCB é hoje o equipamento cultural mais forte de Lisboa. Resolveu uma área urbana problemática, ofereceu à cidade um espaço priviligiado para as mais diversas actividades (colóquios, exposições, espectáculos), e, acima de tudo, criou valor urbano. O valor da Casa da Música será notado a longo prazo. Não tenho dúvidas que a sua excelência arquitectónica orgulhará a tão mal-tratada auto-estima dos portugueses (em particular dos portuenses), para além de funcionar como pólo cultural dinamizador (falo unicamente do edifício, não quero saber das trapalhadas sucessivas na administração). Por estas e outras razões ainda bem que o Estado construiu estas obras. Coloco uma questão a LR: o valor patrimonial de uma obra é desprezável? É justo comparar o Colombo com o CCB unicamente com base no dinheiro que sai do bolso dos portugueses? Ou a Casa da Música com o Norte Shopping? E, se nenhuma instituição privada estaria disposta a construir o CCB ou a Casa da Música, não será uma função do Estado construí-los? A população quer ver o seu dinheiro bem aplicado, e os grandes projectos arquitectónicos são um exemplo disso. Basta ver a indignação que se gerou quando circulou a notícia da venda do Pavilhão de Portugal. Que os meus impostos continuem a pagar as grandes obras. É o mínimo que se pode exigir.
ACT: O Lutz continua a conversa: Apologia de edifícios faustosos, pagos pelo contribuinte.
«Em Portugal e em qualquer outro País, os edifícios mais faustosos, monumentais, emblemáticos, de traça arquitectónica ímpar, foram construídos pelo Estado ou pela Igreja. Porque será???»
LR desenvolveu depois a ideia na (interessante) discussão que se gerou na caixa de comentários:
«Ou seja, os edifícios grandiosos, faustosos, emblemáticos foram construídos principalmente pelo Estado e pela Igreja porque estas foram desde sempre as únicas instituições às quais não se colocava o problema de escassez ou de custo dos recursos: sempre os obtiveram de forma duradoura e mais ou menos coerciva. O objectivo na construção nunca teve a ver com critérios de satisfação de necessidades específicas ou de rentabilidade, mas sim de demonstração de poder.
Como tu dizes, hoje os edifícios mais notáveis (eu diria mais demandados) são os centros comerciais. Os privados constroem-nos e continuarão a fazê-lo enquanto tal lhes for benéfico. Mas nenhuma instituição privada construiria alguma vez o CCB ou a Casa da Música...»
Em primeiro lugar não acho que os edifícios mais notáveis sejam os centros comerciais. É absurdo dizer isso. Por uma razão fundamental: são maus. Não conheço um único centro comercial que tenha tornado Lisboa ou o Porto (por exemplo) num sítio melhor para viver.
Há uma frase de LR que considero exemplificativa da diferença de opiniões que temos: «Mas nenhuma instituição privada construiria alguma vez o CCB ou a Casa da Música...» Isso é mau ou bom? O CCB é hoje o equipamento cultural mais forte de Lisboa. Resolveu uma área urbana problemática, ofereceu à cidade um espaço priviligiado para as mais diversas actividades (colóquios, exposições, espectáculos), e, acima de tudo, criou valor urbano. O valor da Casa da Música será notado a longo prazo. Não tenho dúvidas que a sua excelência arquitectónica orgulhará a tão mal-tratada auto-estima dos portugueses (em particular dos portuenses), para além de funcionar como pólo cultural dinamizador (falo unicamente do edifício, não quero saber das trapalhadas sucessivas na administração). Por estas e outras razões ainda bem que o Estado construiu estas obras. Coloco uma questão a LR: o valor patrimonial de uma obra é desprezável? É justo comparar o Colombo com o CCB unicamente com base no dinheiro que sai do bolso dos portugueses? Ou a Casa da Música com o Norte Shopping? E, se nenhuma instituição privada estaria disposta a construir o CCB ou a Casa da Música, não será uma função do Estado construí-los? A população quer ver o seu dinheiro bem aplicado, e os grandes projectos arquitectónicos são um exemplo disso. Basta ver a indignação que se gerou quando circulou a notícia da venda do Pavilhão de Portugal. Que os meus impostos continuem a pagar as grandes obras. É o mínimo que se pode exigir.
ACT: O Lutz continua a conversa: Apologia de edifícios faustosos, pagos pelo contribuinte.
Turquia
Eu quero que a Turquia adira à União Europeia. Por uma simples razão: gostava de ver a Turquia como um país europeu, abraçando tudo aquilo que isso implica. E, sim, vejo esta adesão como uma lança em África, ou melhor dizendo, uma lança no Médio Oriente.
a barriga de um arquitecto: 1 ano
Parabéns ao Daniel que mantém o seu blogue há (faz amanhã) um ano. Manter um blogue, individual, durante um ano não custa nada, qualquer um o consegue. Mais difícil é fazê-lo com qualidade. A barriga de um arquitecto prova que isso é possível.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2004
Instruções:
Os post 1 a 5 estão relacionados. Começar pelo 1, e depois avançar gradualmente e por ordem crescente até ao 5. Se não perceber nada então terá seguido exemplarmente as instruções.
4. observador exterior
Eu, como já se percebeu, era um peixe fora de água. Mas não pensem que quis mandar-me lá para dentro.
3. não podemos viver sem eles
Mas ouvi outro peixe, um peixe diferente, dizer, a seco, que não apreciava a vida no mar. E imediatamente saltar lá para dentro, sem que ninguém o tivesse empurrado. Provavelmente não sobreviveria cá fora, e isso sai em sua defesa. Mas nunca o saberemos.
2. de acordo
Não sou sempre do contra, claro. Só quando isso me diverte. Sei também que isso pode ter efeitos a longo prazo. Estar sempre a confrontar quem me rodeia com argumentos contrários, apenas pelo prazer de o fazer, pode, se for bem feito, despertar alguma coisa. E, quando menos se espera, as surpresas acontecem e as pessoas revelam-se. A máscara, que afinal não era própria mas era imposta sem nínguem ter pedido, cai. E cai nas situações mais interessante. Ontem ouvi um peixe dizer: «este mundo marítimo não é nada bom.»
1. do contra
Ser do contra é algo que frequentemente aparece numa conversa para descrever alguém, ele é do contra. Não me importo de ser honesto: sou do contra. Umas vezes acertadamente, outras vezes sem razão. E isso não dignifica a minha imagem. Mas esse problema só se levantaria se desse importância à minha imagem.
Coisas que não se fazem
Por exemplo, dizer que se tem muita coisa para escrever e não escrevê-las. Mas o que querem? Estas coisas não se adivinham.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2004
são 18:11
De passagem, enquando tomo balanço para escrever o que disse que ia escrever:
1. Há coisas que merecem ser linkadas (ou lincadas).
«Em Portugal, continuamos a valorizar acima de tudo da dignidadezinha pequeno-burguesa de porta de igreja: não há maior arrongância que esta; acima de tudo: é a pior das imodéstias.»
2. Também já me rendi ao Firefox. Usem-no.
3. It's a dirty job, but someone's got to do it (frase que se aplica, frequentemente.)
1. Há coisas que merecem ser linkadas (ou lincadas).
«Em Portugal, continuamos a valorizar acima de tudo da dignidadezinha pequeno-burguesa de porta de igreja: não há maior arrongância que esta; acima de tudo: é a pior das imodéstias.»
2. Também já me rendi ao Firefox. Usem-no.
3. It's a dirty job, but someone's got to do it (frase que se aplica, frequentemente.)
A benção do bloguista
Estou, neste momento, a ser alvo da estima dos deuses da blogosfera: tenho excesso de temas. Muitos assuntos sobre os quais me apetece verdadeiramente escrever. Serve isto para dizer que irei continuar com o tema da imagem, reagindo ao que a Cris escreveu e explicando melhor o que quis dizer com «as imagens nunca falam por si» (nota para mim mesmo: tem a ver com a fotografia e os abusos de interpretação, não se excluindo a hipótese de se referir a propaganda dos regimes totalitários, bem como com a pintura abstracta.) Há outro texto que vagueia na minha cabeça que ostenta o sugestivo título de O rapaz franzino que ganhava um euro à hora. Novidades para breve, portanto.
P.S: Não me lanço já nestas nobres tarefas porque já se faz tarde, há blogues para ler, e sobretudo coisas que se assumem como mais urgentes. Smses (é isto o plural de sms?) para Itália, por exemplo.
P.S: Não me lanço já nestas nobres tarefas porque já se faz tarde, há blogues para ler, e sobretudo coisas que se assumem como mais urgentes. Smses (é isto o plural de sms?) para Itália, por exemplo.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2004
mail do outro lado do atlântico
«Acho que uma imagem diz algo por si só quando é puramente imagem. Melhor eu me explicar: Por exemplo, em arte contemporânea uma instalação feita de lixo e cacos de vidro precisa sempre da palavra do"artista", como uma espécie de bula. Já uma tela de Monet basta-se. É imagem, sem querer dizer nada. Pura imagem.»
Cris
Cris
abalo
O monitor dançou à minha frente. Durante uns segundos, uns longos segundos.
Adenda: 5,4 na escala Richter. Dizem que o ciclo sísmico de Lisboa é de 300 anos, mais coisa menos coisa. Ora, se for menos coisa, já não andamos longe.
Adenda: 5,4 na escala Richter. Dizem que o ciclo sísmico de Lisboa é de 300 anos, mais coisa menos coisa. Ora, se for menos coisa, já não andamos longe.
domingo, 12 de dezembro de 2004
liberalismo e religião
O Blasfémias, blogue liberal e plural, que conta com quase uma dezena de participantes, acaba de sofrer um abalo considerável. A razão? Religião. Nos tempos que correm as várias sensibilidades andam muito irritáveis. Considero este facto bastante importante. Voltarei a isto.
sábado, 11 de dezembro de 2004
As imagens nunca falam por si
Não percebo a insistência. Mas falam por si porquê? A imagem fala sempre por outra coisa. Que não pode falar por si, recorrendo por isso aos serviços da imagem. A imagem é um meio, um modo, um transporte. O que carrega é que importa. A imagem nunca tem nada a dizer, só a comunicar. A imagem não pode falar por si, porque se falasse por si estaria sempre a dizer a mesma coisa. A imagem está sempre a dizer a mesma coisa precisamente porque não fala por si, fala por outro, que não está presente, que mandou dizer alguma coisa. Sempre a mesma coisa. A imagem não tem alternativa: não fala por si.
a coisa aqui tá preta
Já refeito das comemorações intensas que varreram o país de norte a sul a propósito da restauração da independência, é tempo de encarar a verdade: o país acabou. Portugal, o rectângulo à beira-mar plantado, acabou. Melhor: desistiu de existir. Não vejo nada que nos possa salvar. O sistema político já não faz sentido. O governo é incompetente, mas o presidente consegue estar à altura. O povo diz mal. Todos falam deste país, como se falassem de um familiar incómodo. Os portugueses não gostam de Portugal. Paciência. Os ingleses gostam, o mercado equilibra-se. A Europa está a chegar para restaurar a ordem e o progresso. Durão veta na Comissão as suas próprias iniciativas enquanto primeiro-ministro de Portugal. Haja esperança. O país está a chegar ao fim. Respiremos de alívio. Não falta muito.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2004
quarta-feira, 8 de dezembro de 2004
é a história da minha vida (mas no fim ele fica com a miúda, há que ressalvar)
«You just... you just don't do anything. You get lost in your head, and you sit around thinking instead of getting on with something, and most of the time you think rubbish. You always seem to miss what's really happening.»
High Fidelity, Nick Hornby
High Fidelity, Nick Hornby
a estética do insulto
Acabei de perder um texto que demorou bastante tempo a escrever sobre o artigo de Maria Filomena Mónica sobre Boaventura Sousa Santos. O texto era pequeno, mas as palavras saíram muito a custo. Era um sinal, claro está, e como eu não soube interpretá-lo o meu computador tratou de mandá-lo desta para melhor. Caro JPT, não pretendo aderir ao conteúdo da argumentação de MFM no que respeita a Moçambique, mas permita-me que adira à forma no que respeita a tudo o resto. O que MFM fez foi um insulto à moda antiga, um ataque pessoal e transparente, e por isso, contrariamente ao que por aí se diz, foi fundamental compôr a personagem do atacado citando desde a sua poesia juvenil até aos prefácios dos manuais escolares. Tudo serve para desenhar os contornos do alvo, o que só valoriza a precisão do tiro. Portugal precisa de alfinetes espetados, não de cobertores quentinhos. E desde que o autor do insulto tenha por este alguma consideração estética, nunca cairemos no mau gosto.
terça-feira, 7 de dezembro de 2004
a imitar a vida
A melhor série da blogosfera é, sem a menor hesitação, o Livro de Obra. Tem feito mais pela divulgação e denúncia do actual estado do sub-mundo da construção em Portugal do que dezenas de anos de artigos do Nuno Portas (do, de, de, do... bela merda de frase). Vem isto a propósito das portadas interiores de madeira de 2,65 metros de altura. Para quem assistiu ao desenrolar do drama sabe que a alternativa era qualquer coisa a «imitar o antigo». Um brinde às portadas.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2004
correndo o risco de estar a bater no ceguinho
Hoje, na imprensa, dois artigos sobre a Igreja. Comparem-nos. Reparem na amargura deste tipo e na esperança deste.
Não sei se devia continuar a dar destaque a César das Neves. Não é bem destaque, porque eu não dou destaque a ninguém, mas é talvez dar importância pessoal. Se o faço é porque vejo nesta figura muitos daqueles com quem tenho partilhado experiências religiosas, e que são em grande parte culpados por um afastamento cada vez maior. É uma Igreja amargurada, ressentida, intolerante, sem capacidade de absorver o mundo que a rodeia, resistente, orgulhosamente só, que cultiva, sem pudor, o argumento do poucos mas bons, que diz (como eu já ouvi) «a nossa religião é melhor portanto devíamos convertê-los a todos», isto numa conversa sobre o Islão. Estou a confundir muita coisa? Estarei. Não me importo. Não quero deixar aqui nenhum ponto específico, não quero provar nenhuma tese. No fundo o que sinto é desilusão. Desilusão que me deixa muito perdido. Digo-vos, é muito duro ser confundido com estes tipos, que se apropriam de um modo obsceno do conceito de democracia-cristã. Sou democrata, sou cristão (por enquanto), mas corro o risco de deixar de ser ambas se isso tiver que significar uma partilha de ideias com quem deste chavão se apropria. Já me desviei. Só quero acabar com um apelo: não leiam o César das Neves. Disse.
Não sei se devia continuar a dar destaque a César das Neves. Não é bem destaque, porque eu não dou destaque a ninguém, mas é talvez dar importância pessoal. Se o faço é porque vejo nesta figura muitos daqueles com quem tenho partilhado experiências religiosas, e que são em grande parte culpados por um afastamento cada vez maior. É uma Igreja amargurada, ressentida, intolerante, sem capacidade de absorver o mundo que a rodeia, resistente, orgulhosamente só, que cultiva, sem pudor, o argumento do poucos mas bons, que diz (como eu já ouvi) «a nossa religião é melhor portanto devíamos convertê-los a todos», isto numa conversa sobre o Islão. Estou a confundir muita coisa? Estarei. Não me importo. Não quero deixar aqui nenhum ponto específico, não quero provar nenhuma tese. No fundo o que sinto é desilusão. Desilusão que me deixa muito perdido. Digo-vos, é muito duro ser confundido com estes tipos, que se apropriam de um modo obsceno do conceito de democracia-cristã. Sou democrata, sou cristão (por enquanto), mas corro o risco de deixar de ser ambas se isso tiver que significar uma partilha de ideias com quem deste chavão se apropria. Já me desviei. Só quero acabar com um apelo: não leiam o César das Neves. Disse.
domingo, 5 de dezembro de 2004
sábado, 4 de dezembro de 2004
A Escola
Na revista Xis de hoje Camilo Rebelo e Tiago Pimentel são entrevistados. Quem são? Os vencedores de um dos concursos mais badalados dos últimos tempos: o Museu de Foz Côa. São dois desconhecidos que aparecem agora com um projecto, do qual só se conhecem algumas imagens e intenções, muito interessante, novo, e estimulante. Mas não é isso que me interessa agora. Se cito a Xis tenho de ter uma forte razão para isso. A dada altura Tiago Pimentel diz o seguinte: «Nasci e vivi sempre em Lisboa, e tomei uma opção deliberada de vir para o Porto estudar arquitectura, no fundo por causa do trabalho do arquitecto Siza Vieira. Isso foi um marco importante.» Este desejo de perseguir uma escola é comum a muita gente. E se ultimamente se tem vindo a assistir a variadas críticas à Escola do Porto, a verdade é que ainda é a única escola visível em Portugal, o único local onde o espírito é honesto e transparente. O que levanta o debate: devem as escolas de arquitectura ser escolas, com o seu espírito bem marcado? Ou é isso uma forma de limitar as potencialidades de descoberta que a aprendizagem na arquitectura possibilita? Não tenho certezas acerca disto, mas impressiona-me o mito da Escola do Porto. Há ali uma formação específica na maneira de pensar a arquitectura, única no mundo, que muito tem feito para a criação de uma cultura própria do Portugal contemporâneo. Olhando para a projecção dos nomes portugueses na Europa (independentemente de gostarmos ou não) percebe-se que os dois nomes de Lisboa, Carrilho da Graça e Gonçalo Byrne (ou mesmo Aires Mateus), poderiam pertencer perfeitamente ao universo formal que identificamos como Escola do Porto, o que prova que a sua influência estende-se para além dos seus limites geográficos. E o que é a Escola do Porto? O que a denuncia? Há, de facto, elementos de continuidade que são facilmente identificáveis e que vêm desde Fernando Távora. A arquitectura da Escola do Porto é contida, contextual, rigorosa, intimamente ligada à pedra e ao património, de linguagem neo-moderna (ou simplesmente moderna, se quisermos). É isto que nós, os não-peritos e apaixonados, vemos como Escola do Porto. Também vemos os malefícios deste modo de pensar institucionalizado, expressados no culto da personalidade acrítico. Sim, a Escola do Porto também tem gerado aquilo a que Pedro Vieira de Almeida chamada de sizinhas, ou seja, um conjunto de obras feitas por gente que não consegue identificar os verdadeiros elementos base da escola, e se ficam por piscadelas de olho estilísticas sem consequência. E agora volto ao princípio, ao Museu de Foz Côa, para justificar o sucesso escola. O Museu de Foz Côa não é branco, não é liso, não é neo-siza. É o resultado de uma maturação de um modo de pensar, uma interpretação pertinente do que verdadeiramente interessa na escola, não se esquecendo a influência decisiva do trabalho da dupla Herzo & deMeuron, onde trabalhou Camilo Rebelo. Mas mesmo aqui se percebe uma coerência benéfica: o espírito do Porto encontra muitos paralelismos no trabalho deste par suíço. Neste caso a passagem académica por uma escola forte não limitou nem constrangiu a futura actividade.
A alternativa Lisboeta não se conseguiu impôr como escola, talvez porque nunca o quis ser. A Universidade Autónoma apresenta hoje o grupo docente mais interessante da capital, mas não é possível traçar uma linha, seja ela qual fôr, que una Graça Dias, Carrilho da Graça, José e Nuno Mateus (ARX), e Francisco e Manuel Aires Mateus. Se é um grupo que não deixa margem para dúvidas da sua qualidade, também é certo que a experiência de qualquer aluno irá ser radicalmente diferente de ano para ano, para o bem e para o mal. Ou o que dizer do grupo de professores do Instituto Superior Técnico (que me interessa e afecta particularmente)? A direcção do curso, preocupada em construir um grupo docente que tivesse como traço comum um "perfil IST", que passa por uma actividade profissional fortemente ligada à obra e à grande escala, apresentou, até este ano, um grupo hiper-heterogéneo: António Barreiros Ferreira, Manuel Vicente (este ano substituido por Falcão de Campos!), Mário Sua Kay e Manuel Salgado. Um aluno submetido a esta máquina trituradora ou sai do curso arquitectonicamente esquisofrénico ou completamente cínico e desapaixonado. Ou então, e aqui reside a toda a minha esperança, consegue aprender a lição fundamental: que a arquitectura é um mundo altamente complexo e contraditório.
A alternativa Lisboeta não se conseguiu impôr como escola, talvez porque nunca o quis ser. A Universidade Autónoma apresenta hoje o grupo docente mais interessante da capital, mas não é possível traçar uma linha, seja ela qual fôr, que una Graça Dias, Carrilho da Graça, José e Nuno Mateus (ARX), e Francisco e Manuel Aires Mateus. Se é um grupo que não deixa margem para dúvidas da sua qualidade, também é certo que a experiência de qualquer aluno irá ser radicalmente diferente de ano para ano, para o bem e para o mal. Ou o que dizer do grupo de professores do Instituto Superior Técnico (que me interessa e afecta particularmente)? A direcção do curso, preocupada em construir um grupo docente que tivesse como traço comum um "perfil IST", que passa por uma actividade profissional fortemente ligada à obra e à grande escala, apresentou, até este ano, um grupo hiper-heterogéneo: António Barreiros Ferreira, Manuel Vicente (este ano substituido por Falcão de Campos!), Mário Sua Kay e Manuel Salgado. Um aluno submetido a esta máquina trituradora ou sai do curso arquitectonicamente esquisofrénico ou completamente cínico e desapaixonado. Ou então, e aqui reside a toda a minha esperança, consegue aprender a lição fundamental: que a arquitectura é um mundo altamente complexo e contraditório.
O artigo do mês
«O Sociólogo-Poeta Boaventura Sousa Santos
por Maria Filomena Mónica
No último mês de Agosto tive uma revelação. Descobri que, nos seus tempos livres, o Prof. Sousa Santos é, ou foi, poeta. Muitos de nós - por sorte escapei à regra - escreveram versos durante a adolescência, os quais, atingida a idade adulta, eram geralmente deitados para o lixo. O mesmo não o fez o Sociólogo-Mor do Reino, Prof. Boaventura Sousa Santos. Tendo publicado a sua poesia, em 1964, sob o nome de Boaventura de Sousa, decidiu reincidir, em 1980, num livrinho intitulado "Têmpera", o qual surpreendentemente não faz parte do farfalhudo "curriculum vitae" que aparece na Internet.
Ainda pensei em fazer uma análise pseudo-laudatória, usando a linguagem críptica de alguns críticos literários, mas, não fosse alguém tomar a paródia a sério, acabei por desistir, oferecendo, em vez disso, excertos destas jóias líricas. No livro, publicado pela Centelha, há um pouco de tudo, desde recordações da educação católica (ver "Cravo Mal Temperado-I) a poemas pseudo eruditos (ver "Novo Mundo") passando por dislates incompreensíveis (ver "Cravo Mal Temperado-II).
Os poemas mais canhestros, mas os mais cómicos, são os de natureza erótica. Começo por citar uma estrofe retirada de "Labirinto": "...e muitas vezes sou um rego d'água/ a beber as raízes do teu corpo de nogueira". Do mesmo poema, leia-se: "A rua retesada/ guarda todos os sinais/ (...) faz parte deste tiro/ estar no alvo/ e retirar-se/ faz parte desta gota/ ser a taça e alagar-se/ faz parte deste cisma/ ter entranhas e sujar-se/ faz parte deste coito/ estar a um canto a masturbar-se". Existem muitos outros poemas, simultaneamente pretensiosos e indigentes, como o "Material de Construção", o qual abre com as seguintes linhas: "Desmamaram-se virgíneas tetas/ e os limões ali cheirando/ que da Ilha dos Amores saíram/ e do silêncio" ou o "Ode à Infância", onde surgem estrofes como " ...nas ruínas do ciclone de quarenta/ trabalho manuais sem mestre nem montra/ entram chefes guerras caracóis/ tesouras e pauzinhos/ nas rachas das meninas/ na catequese é em coro/ e em filas/ no escuro dos intervalos/ medem-se as pilas/ Boaventura tens quebranto/ dois te puseram três te hão de tirar/ se eles quiserem bem podem/ são as três pessoas da Santíssima Trindade...". Que tal?
Homem feito, Boaventura Sousa Santos ainda se orgulha da sua escrita adolescente. Num país onde não existe uma única revista de livros, a coisa passou desapercebida. Até eu levei décadas a dar com ela. Mas, ao fazê-lo, fiquei de boca aberta. Cem anos depois de Cesário Verde ter transformado a poesia portuguesa, o sociólogo de Coimbra ousava oferecer ao público uma série de poemas primários, possidónios e indecorosos, sem que ninguém - a editora, a crítica, os familiares - o tivesse caridosamente prevenido do perigo do gesto. Nos salões pequeno-burgueses do centro do país, estas coisas ainda devem ser apreciadas. Para vergonha do país. Sem ideia, sem originalidade, sem cor, a sua poesia nada exprime. Pasmada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. Fala do perfume quebradiço das glicínias entre a tarde manifesta de Abril, onde o povo prepara o jantar nas folhas de auroras jacobinas e onde alguém escreve guerras contra a gritaria melada duma coca-cola morta. Que Diabo quererá dizer isto? Quando muito, o autor pretende dar lustre aos entediantes trabalhos com que, por esse mundo fora, anda a ganhar o pão de cada dia.
Mas que esperava eu encontrar naquele volumezinho descoberto, entre o pó, numa tarde de Verão? Não deveria saber que o mais certo era deparar-me com as delícias, delíqueos e delírios que agitam os arcaicos cérebros de Coimbra quando lambuzados com o verniz dos crânios que se passeiam por Wisconsin? Em 1871, na sua primeira "Farpa", Eça de Queiroz escrevia que, na literatura nacional, havia uma santa distribuição do trabalho: no final, o autor recebia a condecoração de Sant'Iago, o editor ficava com as perdas financeiras e o leitor entediava-se. Foi isto - ou pelo menos a primeira parte - que, em 1996, aconteceu a Boaventura Sousa Santos, quando o então Presidente da República, Mário Soares, lhe colocou no peito a medalha de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago de Espada. Se o leitor quiser conhecer melhor a alma do homenageado, mais não tem do que ir a um alfarrabista, onde encontrará facilmente resmas atrás de resmas da sua obra poética. Mesmo que, como eu, pertença ao sexo feminino, nada tem temer. Que eu saiba, o Prof. Sousa Santos jamais foi acusado de assédio sexual. Os seus devaneios destinam-se tão-só a fazer corar as meninas das aldeias.
Estava eu a meditar nos seus poemas, quando, ao entrar numa livraria, descobri dois manuais do 12º ano, um, intitulado "Sociologia", e outro, "Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social", redigidos por professores do Ensino Secundário, mas ambos com "a participação do Prof. Dr. Boaventura Sousa Santos". No seu conhecido estilo, eis o que o catedrático diz no prefácio ao primeiro livro: "A aprendizagem de uma disciplina como a Sociologia, disciplina pouco codificada e em grande medida devedora de uma 'pedagogia do silêncio' - do 'faz como eu' - necessita do empenhamento dos professores numa prática de pedagogia activa, através da qual se familiarizem os estudantes com uma forma de conhecimento da sociedade que, no essencial, é uma forma de educação para a cidadania". Temendo não ter sido claro, acrescentava: "Partindo deste manual, os docentes podem fomentar a capacidade de espanto e mesmo de indignação, elementos que em meu entender devem estar no cerne de um projecto educativo adequado ao tempo presente. Trata-se de um projecto orientado para combater a trivialização do sofrimento, por via da produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Um passado que, tendo opções, não optou pelas que evitariam o sofrimento que foi e continua a ser infligido a grupos sociais tão vastos, em todo o mundo, e à própria natureza" (sublinhados meus). Que tal como introdução a uma disciplina supostamente científica? Não perceberão os docentes, os pais e os cidadãos que esta prosa, altamente ideológica, corresponde à agenda política de alguém que, provindo da Direita católica, se converteu, após o 25 de Abril, num dos arautos do Movimento Anti-Globalização? Desnecessário é mencionar o segundo prefácio, uma vez que, na essência, é igual ao primeiro.
Mas vale a pena analisar o seu mais recente livro, "Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique", um texto com ambições, escrito, como de costume, de parceria com um exército de assistentes universitários. Após a adopção do relativismo cultural nos 1960, muitos sociólogos adoptaram uma posição romântica, declarando, à Rousseau, que os "selvagens" eram, pelo menos, tão "bons" quanto nós. Foi uma reviravolta com consequências imprevisíveis. A incapacidade em afirmar a superioridade das tradições culturais do Ocidente contribuiu fortemente para a complacência com que muitos dirigentes do Terceiro Mundo, alguns deles criminosos, passaram a ser encarados.
Boaventura Sousa Santos transformou-se, nos finais dos anos 1970, num influente consultor jurídico dos governos dos PALOP (Angola, Moçambique e Cabo Verde). Subsidiado por organizações supostamente respeitáveis, tem feito dezenas de trabalhos em África, mas as suas investigações estão longe de ser neutras. Basta notar o plural do título, "Justiças", para nos apercebermos do preconceito subjacente aos seus trabalhos. Diante do silêncio dos professores de Direito - os quais temem criticar alguém que se refugiou numa disciplina por eles considerada esotérica - Sousa Santos tem vindo a legitimar práticas menos felizes. Não, nem tudo se equivale. Há sociedades mais iguais, mais livres, mais dignas do que outras. Sei que, se optar pelo caminho do adultério, jamais serei apedrejada em Portugal. O mesmo não me podem garantir as sociedades onde funcionam "as justiças" locais.
Não vou citar, com profusão, o que Prof. Boaventura Sousa Santos escreveu, porque isso só serviria para afastar os leitores. A fim de poderem, todavia, ficar com um gostinho do género, eis uma frase do início: "Neste capítulo, concentramo-nos numa questão específica: as relações entre o Estado e a pluralidade de direitos que, reconhecidos ou não oficialmente, regem os conflitos e a ordem social. Apesar de o paradigma normativo do Estado moderno pressupor que em cada Estado só há um direito e que a unidade do Estado pressupõe a unidade do direito, a verdade é que, sociologicamente, circulam na sociedade vários sistemas jurídicos e o sistema estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos". Pode parecer uma afirmação factual. Mas, subjacente a este olhar, está o desejo de legitimação de práticas legais "alternativas", com raiz numa espécie de colonialismo invertido. Segundo esta corrente, a justiça dos brancos está manchada pelo pecado original do imperialismo; a dos nativos, porque mais genuína, é evidentemente melhor.
Ao longo dos séculos, os liberais têm louvado, e com razão, a importância do Estado de Direito. Podemos encontrar já elementos desta concepção no discurso que, no século V AC, Péricles fez em honra dos mortos da Guerra do Peloponeso. Eis o que Tucídides reproduziu: "Quando se trata de assegurar a solução de disputas privadas, todo e qualquer homem é igual perante a lei. (...) Somos livres e tolerantes no que diz respeito à vida privada; mas, no âmbito do espaço público, obedecemos à lei". A Civilização Ocidental é herdeira destas palavras. Não podemos, não devemos, menosprezar este legado.
Não se pense que o facto de, em anteriores ocasiões, ter criticado Boaventura Sousa Santos releva de uma qualquer obsessão, causada sabe-se lá por que rasteiros motivos. Se escolho a sua figura é por fazer ela parte da "Nomemklatura" sociológica, não só portuguesa (via Associação Portuguesa de Sociologia), mas internacional (através das "redes" em que actualmente está organizada a investigação). Não vale a pena criticar soldados quando temos à mão um general. Na luta, há que apontar à cabeça.»
por Maria Filomena Mónica
No último mês de Agosto tive uma revelação. Descobri que, nos seus tempos livres, o Prof. Sousa Santos é, ou foi, poeta. Muitos de nós - por sorte escapei à regra - escreveram versos durante a adolescência, os quais, atingida a idade adulta, eram geralmente deitados para o lixo. O mesmo não o fez o Sociólogo-Mor do Reino, Prof. Boaventura Sousa Santos. Tendo publicado a sua poesia, em 1964, sob o nome de Boaventura de Sousa, decidiu reincidir, em 1980, num livrinho intitulado "Têmpera", o qual surpreendentemente não faz parte do farfalhudo "curriculum vitae" que aparece na Internet.
Ainda pensei em fazer uma análise pseudo-laudatória, usando a linguagem críptica de alguns críticos literários, mas, não fosse alguém tomar a paródia a sério, acabei por desistir, oferecendo, em vez disso, excertos destas jóias líricas. No livro, publicado pela Centelha, há um pouco de tudo, desde recordações da educação católica (ver "Cravo Mal Temperado-I) a poemas pseudo eruditos (ver "Novo Mundo") passando por dislates incompreensíveis (ver "Cravo Mal Temperado-II).
Os poemas mais canhestros, mas os mais cómicos, são os de natureza erótica. Começo por citar uma estrofe retirada de "Labirinto": "...e muitas vezes sou um rego d'água/ a beber as raízes do teu corpo de nogueira". Do mesmo poema, leia-se: "A rua retesada/ guarda todos os sinais/ (...) faz parte deste tiro/ estar no alvo/ e retirar-se/ faz parte desta gota/ ser a taça e alagar-se/ faz parte deste cisma/ ter entranhas e sujar-se/ faz parte deste coito/ estar a um canto a masturbar-se". Existem muitos outros poemas, simultaneamente pretensiosos e indigentes, como o "Material de Construção", o qual abre com as seguintes linhas: "Desmamaram-se virgíneas tetas/ e os limões ali cheirando/ que da Ilha dos Amores saíram/ e do silêncio" ou o "Ode à Infância", onde surgem estrofes como " ...nas ruínas do ciclone de quarenta/ trabalho manuais sem mestre nem montra/ entram chefes guerras caracóis/ tesouras e pauzinhos/ nas rachas das meninas/ na catequese é em coro/ e em filas/ no escuro dos intervalos/ medem-se as pilas/ Boaventura tens quebranto/ dois te puseram três te hão de tirar/ se eles quiserem bem podem/ são as três pessoas da Santíssima Trindade...". Que tal?
Homem feito, Boaventura Sousa Santos ainda se orgulha da sua escrita adolescente. Num país onde não existe uma única revista de livros, a coisa passou desapercebida. Até eu levei décadas a dar com ela. Mas, ao fazê-lo, fiquei de boca aberta. Cem anos depois de Cesário Verde ter transformado a poesia portuguesa, o sociólogo de Coimbra ousava oferecer ao público uma série de poemas primários, possidónios e indecorosos, sem que ninguém - a editora, a crítica, os familiares - o tivesse caridosamente prevenido do perigo do gesto. Nos salões pequeno-burgueses do centro do país, estas coisas ainda devem ser apreciadas. Para vergonha do país. Sem ideia, sem originalidade, sem cor, a sua poesia nada exprime. Pasmada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. Fala do perfume quebradiço das glicínias entre a tarde manifesta de Abril, onde o povo prepara o jantar nas folhas de auroras jacobinas e onde alguém escreve guerras contra a gritaria melada duma coca-cola morta. Que Diabo quererá dizer isto? Quando muito, o autor pretende dar lustre aos entediantes trabalhos com que, por esse mundo fora, anda a ganhar o pão de cada dia.
Mas que esperava eu encontrar naquele volumezinho descoberto, entre o pó, numa tarde de Verão? Não deveria saber que o mais certo era deparar-me com as delícias, delíqueos e delírios que agitam os arcaicos cérebros de Coimbra quando lambuzados com o verniz dos crânios que se passeiam por Wisconsin? Em 1871, na sua primeira "Farpa", Eça de Queiroz escrevia que, na literatura nacional, havia uma santa distribuição do trabalho: no final, o autor recebia a condecoração de Sant'Iago, o editor ficava com as perdas financeiras e o leitor entediava-se. Foi isto - ou pelo menos a primeira parte - que, em 1996, aconteceu a Boaventura Sousa Santos, quando o então Presidente da República, Mário Soares, lhe colocou no peito a medalha de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago de Espada. Se o leitor quiser conhecer melhor a alma do homenageado, mais não tem do que ir a um alfarrabista, onde encontrará facilmente resmas atrás de resmas da sua obra poética. Mesmo que, como eu, pertença ao sexo feminino, nada tem temer. Que eu saiba, o Prof. Sousa Santos jamais foi acusado de assédio sexual. Os seus devaneios destinam-se tão-só a fazer corar as meninas das aldeias.
Estava eu a meditar nos seus poemas, quando, ao entrar numa livraria, descobri dois manuais do 12º ano, um, intitulado "Sociologia", e outro, "Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social", redigidos por professores do Ensino Secundário, mas ambos com "a participação do Prof. Dr. Boaventura Sousa Santos". No seu conhecido estilo, eis o que o catedrático diz no prefácio ao primeiro livro: "A aprendizagem de uma disciplina como a Sociologia, disciplina pouco codificada e em grande medida devedora de uma 'pedagogia do silêncio' - do 'faz como eu' - necessita do empenhamento dos professores numa prática de pedagogia activa, através da qual se familiarizem os estudantes com uma forma de conhecimento da sociedade que, no essencial, é uma forma de educação para a cidadania". Temendo não ter sido claro, acrescentava: "Partindo deste manual, os docentes podem fomentar a capacidade de espanto e mesmo de indignação, elementos que em meu entender devem estar no cerne de um projecto educativo adequado ao tempo presente. Trata-se de um projecto orientado para combater a trivialização do sofrimento, por via da produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Um passado que, tendo opções, não optou pelas que evitariam o sofrimento que foi e continua a ser infligido a grupos sociais tão vastos, em todo o mundo, e à própria natureza" (sublinhados meus). Que tal como introdução a uma disciplina supostamente científica? Não perceberão os docentes, os pais e os cidadãos que esta prosa, altamente ideológica, corresponde à agenda política de alguém que, provindo da Direita católica, se converteu, após o 25 de Abril, num dos arautos do Movimento Anti-Globalização? Desnecessário é mencionar o segundo prefácio, uma vez que, na essência, é igual ao primeiro.
Mas vale a pena analisar o seu mais recente livro, "Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique", um texto com ambições, escrito, como de costume, de parceria com um exército de assistentes universitários. Após a adopção do relativismo cultural nos 1960, muitos sociólogos adoptaram uma posição romântica, declarando, à Rousseau, que os "selvagens" eram, pelo menos, tão "bons" quanto nós. Foi uma reviravolta com consequências imprevisíveis. A incapacidade em afirmar a superioridade das tradições culturais do Ocidente contribuiu fortemente para a complacência com que muitos dirigentes do Terceiro Mundo, alguns deles criminosos, passaram a ser encarados.
Boaventura Sousa Santos transformou-se, nos finais dos anos 1970, num influente consultor jurídico dos governos dos PALOP (Angola, Moçambique e Cabo Verde). Subsidiado por organizações supostamente respeitáveis, tem feito dezenas de trabalhos em África, mas as suas investigações estão longe de ser neutras. Basta notar o plural do título, "Justiças", para nos apercebermos do preconceito subjacente aos seus trabalhos. Diante do silêncio dos professores de Direito - os quais temem criticar alguém que se refugiou numa disciplina por eles considerada esotérica - Sousa Santos tem vindo a legitimar práticas menos felizes. Não, nem tudo se equivale. Há sociedades mais iguais, mais livres, mais dignas do que outras. Sei que, se optar pelo caminho do adultério, jamais serei apedrejada em Portugal. O mesmo não me podem garantir as sociedades onde funcionam "as justiças" locais.
Não vou citar, com profusão, o que Prof. Boaventura Sousa Santos escreveu, porque isso só serviria para afastar os leitores. A fim de poderem, todavia, ficar com um gostinho do género, eis uma frase do início: "Neste capítulo, concentramo-nos numa questão específica: as relações entre o Estado e a pluralidade de direitos que, reconhecidos ou não oficialmente, regem os conflitos e a ordem social. Apesar de o paradigma normativo do Estado moderno pressupor que em cada Estado só há um direito e que a unidade do Estado pressupõe a unidade do direito, a verdade é que, sociologicamente, circulam na sociedade vários sistemas jurídicos e o sistema estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos". Pode parecer uma afirmação factual. Mas, subjacente a este olhar, está o desejo de legitimação de práticas legais "alternativas", com raiz numa espécie de colonialismo invertido. Segundo esta corrente, a justiça dos brancos está manchada pelo pecado original do imperialismo; a dos nativos, porque mais genuína, é evidentemente melhor.
Ao longo dos séculos, os liberais têm louvado, e com razão, a importância do Estado de Direito. Podemos encontrar já elementos desta concepção no discurso que, no século V AC, Péricles fez em honra dos mortos da Guerra do Peloponeso. Eis o que Tucídides reproduziu: "Quando se trata de assegurar a solução de disputas privadas, todo e qualquer homem é igual perante a lei. (...) Somos livres e tolerantes no que diz respeito à vida privada; mas, no âmbito do espaço público, obedecemos à lei". A Civilização Ocidental é herdeira destas palavras. Não podemos, não devemos, menosprezar este legado.
Não se pense que o facto de, em anteriores ocasiões, ter criticado Boaventura Sousa Santos releva de uma qualquer obsessão, causada sabe-se lá por que rasteiros motivos. Se escolho a sua figura é por fazer ela parte da "Nomemklatura" sociológica, não só portuguesa (via Associação Portuguesa de Sociologia), mas internacional (através das "redes" em que actualmente está organizada a investigação). Não vale a pena criticar soldados quando temos à mão um general. Na luta, há que apontar à cabeça.»
sexta-feira, 3 de dezembro de 2004
Steve McCurry
«I was in a beat-up taxi traveling through the desert to a town called Jaisalmer on the India-Pakistan border. It was in June, and as hot as the planet ever gets. The rains had failed in this part of Rajasthan for the past thirteen years. I wanted to capture something of the mood of anticipation before the monsoon.
As we drove down the road, we saw a dust storm grow – a typical event before the monsoon breaks. For miles it built into a huge frightening wall of dust, moving across the landscape like a tidal wave, eventually enveloping us like a thick fog. As it arrived, the temperature dropped suddenly and the noise became deafening. Where we stopped, women and children worked on the road – something they are driven to do when the crops fail – now barely able to stand in the fierce wind, clustered together to shield themselves from the sand and dust. I tried to make pictures. The road workers didn’t even notice me. In the strange dark-orange light and howling wind, battered by sand and dust they sang and prayed. Life and death seemed to hang in precarious balance.»
quinta-feira, 2 de dezembro de 2004
separação das águas
Luis Osório e o seu A Capital deu o exemplo ao apoiar abertamente John Kerry nas eleições norte-americanas. Vivem-se tempos de grandes decisões, onde emerge um dever cívico de clarificação de posições. Não podemos fingir que somos neutros. É por isso que este blogue, o Complexidade e Contradição, revela aqui, hoje, e perante todos aqueles que quiserem ler, que apoia sem reservas João Pedro George. Os lados estão traçados: não é possível continuar a mostrar complacência com Rui Falcão, que acabou de cometer o pecado capital: disse mal do Mário de Carvalho. Temos de dizer basta.
par de chapadas
Eu juro que se mais alguém sentir a necessidade de me dizer «escreves melhor do que falas» eu vou-lhe às fuças. Ai vou vou. Mas por acaso alguém me vê na rua gritando que o céu é azul? Ou que o Santana é incompetente? Ou que Newton tinha razão? Ou que o Pinto da Costa é corrupto? Ou que o Louçã tem uma cara estranha? Ou que ler da esquerda para a direita é melhor do que ler da direita para a esquerda? Ou que o 'b' vem depois do 'a'? E o 'c' depois do 'b'? Ou que a Super Bock é melhor do que a Sagres, tirando no capítulo «minis»? Ou que falta nível no futebol português? Ou que o Taveira é colorido? Ou que está mais frio em Copenhaga do que em Lisboa? Ou que a bunda brasileira é um mito eternamente por confirmar? Ou que a Gisele Bundchen é a mulher mais bonita do mundo? Ou que este post não faz qualquer tipo de sentido? Ou que vou votar em branco? Hã? Hã? Hã? Bem me parecia.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2004
pois não faz
Tento explicar, ao telefone, para longe, o que se passa. «Mas isso não faz qualquer sentido.»
também sei fazer de oráculo
Aproveito a onda e revelo-me um profeta também:
«Ontem, no programa Prós e Contras, Zé Sócrates uma imagem perfeita dos socialistas: capazes de enervar um morto, desfazados da realidade, completamente de consciência tranquila sobre o que andaram a fazer, arrogantes, detentores da pseudo-verdade, falando do que não sabem, politizando tudo o que se mexe, dizendo, sem papas na língua, que estes dois anos de Durão Barroso são incomparavelemente piores do que a meia dúzia de Guterres. Cheira-me a secretário-geral...»
07 de Janeiro de 2004 / www.oprojecto.blogspot.com
«Ontem, no programa Prós e Contras, Zé Sócrates uma imagem perfeita dos socialistas: capazes de enervar um morto, desfazados da realidade, completamente de consciência tranquila sobre o que andaram a fazer, arrogantes, detentores da pseudo-verdade, falando do que não sabem, politizando tudo o que se mexe, dizendo, sem papas na língua, que estes dois anos de Durão Barroso são incomparavelemente piores do que a meia dúzia de Guterres. Cheira-me a secretário-geral...»
07 de Janeiro de 2004 / www.oprojecto.blogspot.com
Perversidade atroz
«Há gente que só tem amigos de direita ou de esquerda. É a espécie que me assusta mais. A ideia de que duas pessoas se têm de dar porque partilham as mesmas opiniões políticas é de uma perversidade atroz. Tão improvável como a política na amizade é a amizade na política.»
Pedro Lomba, Política à Parte, in DN 30.11.04
Pedro Lomba, Política à Parte, in DN 30.11.04
terça-feira, 30 de novembro de 2004
O fim do Gato Fedorento
O tempo é de reflexão. Há que parar, pensar, e tirar as devidas ilações desta crise. Sem medos, com frontalidade, apelando sempre à serenidade. Pois bem, a única análise séria que há a fazer, aquela que verdadeiramente importa às portuguesas e aos portugueses, é a que tem como conclusão a afirmação que intitula este post. Note-se: a 13 de Julho escrevia RAP o seguinte:
«Não se surpreendam, portanto, se o blog retomar a actividade dos primeiros tempos. Que diabo, Santana Lopes está no poder. Alguns posts escrevem-se praticamente sozinhos.»
Passados 4 meses e 12 dias, repito, 4 meses e 12 dias, o Gato Fedorento brindou-nos com 31 novos posts, repito, 31 novos posts. É uma questão de fazer as contas. Se nem com PSL a coisa foi ao sítio, então é caso para dizer, fazendo um esforço para conter as lágrimas, que o Gato morreu. Dona Chica ter-se-á assustado.
«Não se surpreendam, portanto, se o blog retomar a actividade dos primeiros tempos. Que diabo, Santana Lopes está no poder. Alguns posts escrevem-se praticamente sozinhos.»
Passados 4 meses e 12 dias, repito, 4 meses e 12 dias, o Gato Fedorento brindou-nos com 31 novos posts, repito, 31 novos posts. É uma questão de fazer as contas. Se nem com PSL a coisa foi ao sítio, então é caso para dizer, fazendo um esforço para conter as lágrimas, que o Gato morreu. Dona Chica ter-se-á assustado.
Venha a constituição, a federação, o exército, o hino, o presidente, o governo, as directivas todas que quiserem, o vital moreira, mais o camandro
P.S: Se não causar muito incómodo podiam vir também os ingleses. Muito agradecido.
segunda-feira, 29 de novembro de 2004
Também já não acredito no Pato Donald
«Whatever the appeal of Disney's lands, as a political ethic it represents the tyranny of engineered happiness and consensus. It is undergirded by the fundamental notion that conflict disrupts the satisfaction of consumption and hence the constrution of identities through the purchase of yet more artifacts. Instead, conflict is essential to maintain a democratic society, which is why Disney's attempt to achieve cultural legitimacy through programmed versions of history and through architectural patronage is so troubling. By 1995, Disney controlled one of the biggest television networks in the United States, ABC, which would put major newscasts into its hands. Disney's linkage of freedom and free-market spreads into more realms while its architectural patronage reinforces its cultural image as benign and innocuous.»
Architecture After Modernism, Diane Ghirardo, 1996
Architecture After Modernism, Diane Ghirardo, 1996
Aos poucos vão caindo
Se algum dia escrever a minha biografia, o ano de 2004 vai merecer um capítulo especial. O que não é mau sinal. Espero que assim continue: que todos os anos pareçam merecer um capítulo especial na história por contar.
Há razões e razões para isto. Não me interessa revelá-las todas, até porque as que não importam revelar não são as mais significativas. As outras sim.
Aos poucos vou desistindo. Poderia dizer que mudei, que estou a mudar. Mas não é isso. Vão caindo convicções artificiais. Coisas que sempre preferi serem verdade, apesar de para nisso acreditar ter sido sempre necessária uma boa dose de jogos de cintura argumentativos. Ontem, uma gota no copo de água. Já não dá para gostar de futebol, não o futebol português. Não sendo do Benfica. Não sabendo que o actual «estado das coisas» prefere os Sokotas e os Karadas ao Roger, emprestado lá para o Brasil. Esse sim, sabe tratar a bola, tem alegria no que faz e dá alegria a quem vê. Como aquele miúdo do Sporting, o Carlos Martins. Já não gosto de futebol. O Milan, o meu outro clube, há muito que representava o declínio do Calcio como espectáculo. Uma equipa onde Gattuso, Pirlo, e Seedorf podem jogar juntos, mas onde Kaká e Rui Costa não. Em Espanha ainda se consegue ver qualquer coisa, mas só ao nível do Barcelona, Real Madrid ou Corunha. Alguém perde tempo com um Albacete-Numancia? Mas é em Inglaterra que ainda mora a última esperança. Aí ainda se pode gostar de futebol, ainda nos dão razão para isso. Não falo de um Liverpool-Arsenal, mas sim de um Bolton-Aston Villa, ou de um Tottenham-Everton. O prazer do jogo em si, da coisa pura, do estádio cheio.
O futebol para mim acabou. Acreditem, isto é caso sério.
Há razões e razões para isto. Não me interessa revelá-las todas, até porque as que não importam revelar não são as mais significativas. As outras sim.
Aos poucos vou desistindo. Poderia dizer que mudei, que estou a mudar. Mas não é isso. Vão caindo convicções artificiais. Coisas que sempre preferi serem verdade, apesar de para nisso acreditar ter sido sempre necessária uma boa dose de jogos de cintura argumentativos. Ontem, uma gota no copo de água. Já não dá para gostar de futebol, não o futebol português. Não sendo do Benfica. Não sabendo que o actual «estado das coisas» prefere os Sokotas e os Karadas ao Roger, emprestado lá para o Brasil. Esse sim, sabe tratar a bola, tem alegria no que faz e dá alegria a quem vê. Como aquele miúdo do Sporting, o Carlos Martins. Já não gosto de futebol. O Milan, o meu outro clube, há muito que representava o declínio do Calcio como espectáculo. Uma equipa onde Gattuso, Pirlo, e Seedorf podem jogar juntos, mas onde Kaká e Rui Costa não. Em Espanha ainda se consegue ver qualquer coisa, mas só ao nível do Barcelona, Real Madrid ou Corunha. Alguém perde tempo com um Albacete-Numancia? Mas é em Inglaterra que ainda mora a última esperança. Aí ainda se pode gostar de futebol, ainda nos dão razão para isso. Não falo de um Liverpool-Arsenal, mas sim de um Bolton-Aston Villa, ou de um Tottenham-Everton. O prazer do jogo em si, da coisa pura, do estádio cheio.
O futebol para mim acabou. Acreditem, isto é caso sério.
depois deste artigo já só posso votar Sim
A ideia é simples: a União Europeia não vai «crescer demograficamente» porque discute o «aborto» (não discute, mas isso é outra questão) e as «famílias alternativas», originando o «desnorte» e a «corrupção», o que só pode significar, como diz o Papa, que a Europa está a «matar os seus filhos».
O fanatismo e a demência não têm limites. A capacidade que César das Neves tem de explicar o mundo inteiro e os seus pecados através das questões morais é das tentativas mais ridículas que tenho visto de justificar a importância social da Igreja.
É por estas e por outras, é por estas e por outras...
O fanatismo e a demência não têm limites. A capacidade que César das Neves tem de explicar o mundo inteiro e os seus pecados através das questões morais é das tentativas mais ridículas que tenho visto de justificar a importância social da Igreja.
É por estas e por outras, é por estas e por outras...
domingo, 28 de novembro de 2004
pelas mesmas razões que me fazem gostar do logotipo do Che
Avante, camarada, avante,
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!
neo
Ao ler sobre a história do pós-modernismo, não o pós-modernismo mas tudo aquilo que aconteceu depois do modernismo, fica-se com a sensação que tudo foi inconsequente e meio disparatado. Sejamos neo-modernos, então.
sexta-feira, 26 de novembro de 2004
Mais Veneza 2
Apetece(u)-nos fazer algo impossível: perdermo-nos intencionalmente. É fácil de explicar o porquê da impossibilidade da coisa. Imaginemos a situação, quero perder-me. Ora, se é uma vontade explícita a sua realização é um objectivo atingido. Ou seja, chegado o momento em que poderemos dizer estamos perdidos, estaremos exactamente onde gostaríamos de estar, isto é, num sítio desconhecido e estranho. Logo não estamos perdidos, porque estamos onde desejámos estar. Parece-me claro.
Acontece que nos perdemos. Algumas vezes, dentro do possível, já que Veneza é demasiado pequena para o acontecimento. Rialto, o Guetto Judeu, a fondamenta nuove, e depois o desconhecido, até que se descobre a proximidade de San Marco, onde alguém conhecido estava realmente perdido, à procura do caminho para a biblioteca. Para trás ficaram alguns locais que se reconheceram mas que não seria possível descobrir por decreto.
Acontece que nos perdemos. Algumas vezes, dentro do possível, já que Veneza é demasiado pequena para o acontecimento. Rialto, o Guetto Judeu, a fondamenta nuove, e depois o desconhecido, até que se descobre a proximidade de San Marco, onde alguém conhecido estava realmente perdido, à procura do caminho para a biblioteca. Para trás ficaram alguns locais que se reconheceram mas que não seria possível descobrir por decreto.
eu até sou capaz de encontrar um ou dois exemplos do género em Portugal
«Throughout Europe and the Unitet States, too many brash Postmodernist designs of the 1980s seemed to embody no dreams beyound wealth and power.»
Architecture After Modernism, Diane Ghirardo, Thames & Hudson Ltd, 1996, exemplar adquirido na loja da Peggy Guggenheim Collection, vista sobre o Grande Canal, mais umas bases-de-copo-versão-turista-com-motivos-vaporetto
Architecture After Modernism, Diane Ghirardo, Thames & Hudson Ltd, 1996, exemplar adquirido na loja da Peggy Guggenheim Collection, vista sobre o Grande Canal, mais umas bases-de-copo-versão-turista-com-motivos-vaporetto
Fogo de vista?
Não vou ser cínico: gostei de ler a entrevista de Helena Roseta ao Independente (felizmente on-line). Gostei de ler, por exemplo, que «o PS não está preparado para governar», ou então que «Carmona Rodrigues é uma pessoa competente, que conhece os dossiês e que tem uma ideia para a cidade.» Está certo que o actual PS não corresponde ao PS que Helena Roseta gostaria, mas ainda assim vejo aqui uma vontade de independência política que só fica bem ao Presidente da Ordem dos Arquitectos. Vamos esperar pela prática.
Mais Veneza
Veneza, para mim, é a ilha distante que aprisiona alguém. Ainda que ela não esteja em Veneza.
A pergunta do tratado
Parece-me que há dois cenários possíveis. Primeiro: aceita-se que a Europa é uma inevitabilidade lógica e vota-se sim, numa manifestação de boa fé de quem se pronuncia no escuro; segundo: acha-se que isto tudo cheira mal e que vai acabar numa federação com os alemães e os franceses a mandar e portanto vota-se não.
Eu já decidi: votarei dependendo do meu estado de espírito nesse dia. Assim mesmo. Para o lado que estiver virado.
Eu já decidi: votarei dependendo do meu estado de espírito nesse dia. Assim mesmo. Para o lado que estiver virado.
quinta-feira, 25 de novembro de 2004
eu avisei
O que dizer? Que é um museu? Que está condenada? Que não é uma cidade, é outra coisa qualquer para a qual parece ainda não haver nome? Para quê? Isto só importa a quem lá vive, e quem lá vive não quer ler sobre Veneza, quer é de lá sair.
e o céu afinal esteve azul
Não terá sido do ambiente sereníssimo (a espaços possível por entre orientais e americanos), mas voltei mais convicto no que importa e menos convicto no que não importa (cada vez mais contraditório).
quarta-feira, 17 de novembro de 2004
Olhe que não, olhe que não, ou, O liberalismo não tem cabimento no planeamento urbano
«Os PDM são um instrumento extraordinário. As cidades surgem desenhadas em mapas pintados de verde e variações de castanhos condizentes com áreas de edificação de maior ou menor densidade, zonas históricas, tracejados para indicar novas vias, enfim, um planeamento verdadeiramente soviético. Sim, pois que tal «Plano» organiza, atribuiu ou retira caracteristicas a terrenos e propriedades sejam estas públicas ou privadas. Sem que os respectivos critérios sejam óbvios, claros, uniformes ou, no mínimo, razoáveis.(...)»
Gabriel Silva, no Blasfémias
Gabriel Silva, no Blasfémias
terça-feira, 16 de novembro de 2004
meu deus
No quase em português:
Alguém perguntou ao Sr. K., se existia um deus.
Sr. K. disse: "Aconselho-te reflectir se o teu comportamento se alterava, devido a resposta a essa pergunta. Se não se alterava, podemos deixar cair a pergunta. Se ele se alterava, posso ajudar-te ainda até este ponto, em que posso dizer-te, que já te decidiste: Tu precisas dum deus."
(Bertolt Brecht)
A minha crise é esta: o meu comportamento não se alteraria. Mas dizer que, com base nisto, não preciso de um deus é arriscado. Deus (seja ele qual fôr) não deve precisar de nós. Como acreditar num deus que existe ou deixa de existir com base na nossa ideia sobre isso?
Alguém perguntou ao Sr. K., se existia um deus.
Sr. K. disse: "Aconselho-te reflectir se o teu comportamento se alterava, devido a resposta a essa pergunta. Se não se alterava, podemos deixar cair a pergunta. Se ele se alterava, posso ajudar-te ainda até este ponto, em que posso dizer-te, que já te decidiste: Tu precisas dum deus."
(Bertolt Brecht)
A minha crise é esta: o meu comportamento não se alteraria. Mas dizer que, com base nisto, não preciso de um deus é arriscado. Deus (seja ele qual fôr) não deve precisar de nós. Como acreditar num deus que existe ou deixa de existir com base na nossa ideia sobre isso?
Obrigado Lobo Antunes
Meio embriagado pelo ambiente celebrativo do quarto de século de manuscritos levados à estampa, decidi, finalmente, ler qualquer coisa do homem. Decidi que iria começar pelo Memória de Elefante, pareceu-me bem. Durou dez páginas. Não consegui. Admito, fui vencido. Realmente Lobo Antunes tem razão: o que ele escreve só vai ser entendido daqui a uns anos. Se ele diz quem sou para contrariar? Ainda zonzo, corri para a FNAC, atropelando uns gatos pelo caminho, e saí de lá com dois Paul Auster que ainda não tinha lido. First things first.
segunda-feira, 15 de novembro de 2004
Guia
Em Barcelona comprei um dos melhores (senão o melhor) guias de arquitectura que já vi: BARCELONA 1860-2002. A GUIDE TO ITS MODERN ARCHITECTURE. É perfeito: uma divisão em temas cronológicos irrepriensível; resumos (bastante sintéticos, claro) dos respectivos períodos de crescimento da cidade; um relação muito conseguida entre a apresentação das obras e a sua localização; uma capa resistente à água; desenhos e esquemas essenciais mas não mais do que isso. Enfim, um convite muito bem feito. Se conseguirmos dar-lhe atenção quase que vemos a cidade crescer à nossa volta.
sábado, 13 de novembro de 2004
De Cerdá ao Fórum
Jorge Figueira foi a Barcelona e trouxe de lá um texto que, apesar da falta de brilho, diz muito a quem lá esteve recentemente. Claro que diz coisas que eu não compreendo. Como por exemplo:
«A artisticidade - a "genialidade" - de Gaudí entra muito bem no nosso tempo; as filas intermináveis para ver os edifícios são esclarecedoras.»
Apesar da minha relação pouco pacífica com Gaudí (prefiro os ambientes mais tranquilos, como em La Pedrera, ao rocócó-Art-Nouveau-chamem-lhe-o-que-quiserem do Park Guell, por exemplo), não aceito que as «filas intermináveis» sejam um sinal que Gaudí entra «muito bem no nosso tempo», bem pelo contrário: só mostra como Gaudí não entra bem em tempo nenhum, colocando-se num universo próprio digno de ser atracção. Aliás, parece-me descabida a comparação entre Gaudí e o zeitgeist Moderno:
«Gaudí veicula a ansiedade pelo "novo" que caracteriza a passagem do século, e que depois finalmente surgirá estabilizada no Movimento Moderno. »
O novo não pode ser tão generalizável. O novo de Gaudí não é o mesmo novo do Movimento Moderno. Não é por acaso que Gaudí se sedimentou como um fenómeno regional e único, confundindo-se com Barcelona, e que o Movimento Moderno tenha tido o seu apogeu na definição de Philip Johnson, o Estilo Internacional.
O urbanismo de Cerdá, esse sim, entra «muito bem no nosso tempo», como refere JF:
« A grelha regular de Cerdà recorta as colinas que envolvem a cidade, antecipa a mobilidade do nosso tempo, mas permite também "domesticidade", sentido de pertença, presença do humano.»
Mas aqui não há «filas intermináveis».
Deixo o último parágrafo, que como mandam as regras são as linhas mais inspiradas do texto, onde JF se redime da comparação inicial para atirar Gaudí para o universo que lhe compete:
«Em 2004, Barcelona continua a ser um laboratório urbano, um lugar onde as mutações políticas e culturais são expressas no território, na organização e mediatização do espaço. Talvez faça parte desta "urbanidade" mais indecifrável visitar Gaudí como objecto de ficção científica e colocar o Pavilhão de Barcelona na categoria de ex-futuro. E achar pueril que a Torre Agbar, de Jean Nouvel, "fálica" e cintilante, queira competir com a Sagrada Família, ainda, e sempre, em construção. »
Não resisto a propôr a continuação da conversa em textos publicados na minha outra casa:
Gaudí
Barcelona
ambos escritos em finais de Agosto, depois da minha passagem pela cidade.
«A artisticidade - a "genialidade" - de Gaudí entra muito bem no nosso tempo; as filas intermináveis para ver os edifícios são esclarecedoras.»
Apesar da minha relação pouco pacífica com Gaudí (prefiro os ambientes mais tranquilos, como em La Pedrera, ao rocócó-Art-Nouveau-chamem-lhe-o-que-quiserem do Park Guell, por exemplo), não aceito que as «filas intermináveis» sejam um sinal que Gaudí entra «muito bem no nosso tempo», bem pelo contrário: só mostra como Gaudí não entra bem em tempo nenhum, colocando-se num universo próprio digno de ser atracção. Aliás, parece-me descabida a comparação entre Gaudí e o zeitgeist Moderno:
«Gaudí veicula a ansiedade pelo "novo" que caracteriza a passagem do século, e que depois finalmente surgirá estabilizada no Movimento Moderno. »
O novo não pode ser tão generalizável. O novo de Gaudí não é o mesmo novo do Movimento Moderno. Não é por acaso que Gaudí se sedimentou como um fenómeno regional e único, confundindo-se com Barcelona, e que o Movimento Moderno tenha tido o seu apogeu na definição de Philip Johnson, o Estilo Internacional.
O urbanismo de Cerdá, esse sim, entra «muito bem no nosso tempo», como refere JF:
« A grelha regular de Cerdà recorta as colinas que envolvem a cidade, antecipa a mobilidade do nosso tempo, mas permite também "domesticidade", sentido de pertença, presença do humano.»
Mas aqui não há «filas intermináveis».
Deixo o último parágrafo, que como mandam as regras são as linhas mais inspiradas do texto, onde JF se redime da comparação inicial para atirar Gaudí para o universo que lhe compete:
«Em 2004, Barcelona continua a ser um laboratório urbano, um lugar onde as mutações políticas e culturais são expressas no território, na organização e mediatização do espaço. Talvez faça parte desta "urbanidade" mais indecifrável visitar Gaudí como objecto de ficção científica e colocar o Pavilhão de Barcelona na categoria de ex-futuro. E achar pueril que a Torre Agbar, de Jean Nouvel, "fálica" e cintilante, queira competir com a Sagrada Família, ainda, e sempre, em construção. »
Não resisto a propôr a continuação da conversa em textos publicados na minha outra casa:
Gaudí
Barcelona
ambos escritos em finais de Agosto, depois da minha passagem pela cidade.
sexta-feira, 12 de novembro de 2004
Barba e cabelo
Desde que escrevo em blogues (sempre quis dizer isto no plural) as minhas idas ao barbeiro (recuso-me a falar de «cabeleireiro de homens») resultam sempre em posts. O que não surpreende: o barbeiro é um local extremamente contraditório e um observatório priviligiado do comportamento humano (masculino). Contraditório porque é um sítio onde os homens vão tratar de si, introduzir alterações ao seu corte de cabelo. Faz-se aqui a devida nota: falo do barbeiro, não dessas modernices que há agora. Falo de barbeiros onde os funcionários se confundem com o mobiliário. Onde os funcionários são heterossexuais e têm normalmente para cima de sessenta anos. Os balcões são de madeira, bem conservadora. Eis o meu barbeiro, que por sinal até tem escrito «Cabeleireiro de Homens» escrito na vitrine, em neón, ambos comletamente inutilizados, a vitrine e o néon. O sítio é uma instituição e um regalo para qualquer conservador que se preze: está exactamente na mesma desde que me lembro.
E do que é que se fala? Há dois tipo de clientes de barbeiro: os que falam e os que ouvem. Eu sou, naturalmente, dos que ouvem. Estar de ouvidos bem atentos num barbeiro é meio caminho andado para se entender o país: futebol, política, televisão e, não esquecer, o clima. Hoje, quando entrei, o dono e um cliente falavam. Corrijo, o cliente falava e o dono do estabelecimento ia concordando, o que só revela muita experiência e diplomacia: alguém confia o seu corte de cabelo a quem não apresenta as mesmas opiniões políticas? Pois. O senhor falava alto, muito alto, denunciando a sua vontade em ser ouvido. Apanhei a conversa a meio. Berrava-se contra o governo. O cliente, o tal que orava com eloquência, explicava que não se importava até de ser governado por um «comunista sério», e que tudo era preferível ao actual executivo. Passados não mais do que dois minutos, o rumo político das observações mudava (para os mais distraídos): «ao menos o outro, que morreu à trinta e tal anos, nasceu pobre e morreu pobre, disso não o podem acusar, e até deixou os cofres do estado bem cheios!» Sentava-se na cadeira da outra ponta. Eu, quieto e mudo, escutava. Escutava também o proprietário, que agora já tinha uma distância suficiente que lhe permitia deixar de concordar. Confidenciou-me: «Eu nestas coisas o melhor é não discutir. Porque se ele deixou os cofres cheios, também deixou um país analfabeto. Olhe, como eu, que aos vinte e seis anos fui para a escola aprender a ler e a escrever. Não há pior que um país onde as pessoas não sabem ler nem escrever.»
Trinta segundos depois, o tempo de me perguntar como queria o cabelo (levando a resposta de sempre: igual mas mais curto), já o assunto mudava: «Então, acha que vamos ter um fim-de-semana com sol?»
E do que é que se fala? Há dois tipo de clientes de barbeiro: os que falam e os que ouvem. Eu sou, naturalmente, dos que ouvem. Estar de ouvidos bem atentos num barbeiro é meio caminho andado para se entender o país: futebol, política, televisão e, não esquecer, o clima. Hoje, quando entrei, o dono e um cliente falavam. Corrijo, o cliente falava e o dono do estabelecimento ia concordando, o que só revela muita experiência e diplomacia: alguém confia o seu corte de cabelo a quem não apresenta as mesmas opiniões políticas? Pois. O senhor falava alto, muito alto, denunciando a sua vontade em ser ouvido. Apanhei a conversa a meio. Berrava-se contra o governo. O cliente, o tal que orava com eloquência, explicava que não se importava até de ser governado por um «comunista sério», e que tudo era preferível ao actual executivo. Passados não mais do que dois minutos, o rumo político das observações mudava (para os mais distraídos): «ao menos o outro, que morreu à trinta e tal anos, nasceu pobre e morreu pobre, disso não o podem acusar, e até deixou os cofres do estado bem cheios!» Sentava-se na cadeira da outra ponta. Eu, quieto e mudo, escutava. Escutava também o proprietário, que agora já tinha uma distância suficiente que lhe permitia deixar de concordar. Confidenciou-me: «Eu nestas coisas o melhor é não discutir. Porque se ele deixou os cofres cheios, também deixou um país analfabeto. Olhe, como eu, que aos vinte e seis anos fui para a escola aprender a ler e a escrever. Não há pior que um país onde as pessoas não sabem ler nem escrever.»
Trinta segundos depois, o tempo de me perguntar como queria o cabelo (levando a resposta de sempre: igual mas mais curto), já o assunto mudava: «Então, acha que vamos ter um fim-de-semana com sol?»
quinta-feira, 11 de novembro de 2004
Morreu Arafat
Coisa que me é totalmente indiferente. Importante, sim, é saber que a arquitectura portuguesa continua a passear-se em grande estilo pelos cenários internacionais. Depois da grande presença na Bienal (chegada ao fim no Domingo passado), eis que surge a exposição do Design e da Arquitectura de Portugal na Trienal. Os senhores que andam para aí a apregoar um Portugal Positivo mais as empresas e o camandro que ponham os olhos nisto.
quarta-feira, 10 de novembro de 2004
prémio
Souto Moura ganhou o Secil. Não terá havido nos últimos anos prémio mais concensual que este. O Estádio do Braga, além de ser um estádio, logo muito na moda por cá, recebeu elogios de toda a sociedade, chegando mesmo a alertar o próprio Souto Moura que em entrevista revelou-se preocupado por ninguém criticar a obra. Souto Moura já tinha ganho o Secil, com a Casa das Artes. A evolução da sua obra nestes últimos 10 anos fica bem representada com o contraste entre as duas obras premiadas, principalmente na questão da escala. O Estádio do Braga e, principalmente, o Metro do Porto, confirmaram Souto Moura como um dos grandes arquitectos a nível mundial actualmente. E já se fala no Pritzker...
Só pode
Devo dizer, sobre o último post, que discordo frontalmente de Renzo Piano nesta matéria. Se há coisa que marca a história do Homem (e logo a sua medida) é a vontade de chegar mais alto. As grandes catedrais góticas são «fora da medida do homem»? E como pode Piano acreditar nisto ao mesmo tempo que desenha o edifício mais alto da Europa (e a nova sede do New York Times, por exemplo)? Eu não consigo perceber. A única explicação que encontro é esta citação ser falsa. Só pode.
Faz o que eu digo, não faças o que eu faço
«Creio que nunca deveria ter existido uma época de arranha-céus como as Torres Gémeas, desmesuradas, fora da medida do homem e da proporção urbanística.»
Renzo Piano, in www.arq.com.mx (não encontro o sítio exacto), citado na Arquitectura e Vida
Ora bem, parece que temos aqui um problema. É que Renzo Piano, o mesmo que considera as Torres Gémeas «desmesuradas», está a projectar o edifício mais alto da Europa, a London Bridge Tower. Ou seja, Piano considera os 410 metros de altura do World Trade Center «fora da medida do homem», mas, presume-se, já não faz a mesma afirmação sobre os seus 310 metros em Londres. Querem mais complexo e contraditório?
Renzo Piano, in www.arq.com.mx (não encontro o sítio exacto), citado na Arquitectura e Vida
Ora bem, parece que temos aqui um problema. É que Renzo Piano, o mesmo que considera as Torres Gémeas «desmesuradas», está a projectar o edifício mais alto da Europa, a London Bridge Tower. Ou seja, Piano considera os 410 metros de altura do World Trade Center «fora da medida do homem», mas, presume-se, já não faz a mesma afirmação sobre os seus 310 metros em Londres. Querem mais complexo e contraditório?
terça-feira, 9 de novembro de 2004
eu também
«PRECISO MESMO DE UMA: Ando mesmo precisado de uma. Já não aguento mais.
Primeiro, vi anúncios nos jornais. Depois, recorri a sites. Sempre trazem fotos e a gente não vai ao engano. Embora, reconheço, as fotos também enganem. E as qualidades que apregoam se revelem muitas vezes falsas, numa linguagem excessiva e cansativa.
De qualquer modo, todas as que me pareceram realmente boas são demasiado caras. Não tenho dinheiro que chegue. Porém, não desisto. Procuro outras. Estou mesmo mesmo precisado de uma.
É muito difícil, isto. Comprar casa.»
in Fora do Mundo.
Primeiro, vi anúncios nos jornais. Depois, recorri a sites. Sempre trazem fotos e a gente não vai ao engano. Embora, reconheço, as fotos também enganem. E as qualidades que apregoam se revelem muitas vezes falsas, numa linguagem excessiva e cansativa.
De qualquer modo, todas as que me pareceram realmente boas são demasiado caras. Não tenho dinheiro que chegue. Porém, não desisto. Procuro outras. Estou mesmo mesmo precisado de uma.
É muito difícil, isto. Comprar casa.»
in Fora do Mundo.
OA
Amanhã, de manhã, terá lugar numa certa e determinada instituição mais um acto ilegal e estúpido. Amanhã, de manhã, vão esfregar-se umas costas e lamber-se umas botas.
segunda-feira, 8 de novembro de 2004
Twilight Zone
Parece que o paradoxo de Zenon tem solução. Acho isso uma grande aldrabice. Aquiles nunca conseguirá atingir a tartaruga. Principalmente porque quando isso está perto, a entrega é adiada.
sexta-feira, 5 de novembro de 2004
Faltou dizer
que é amanhã, Domingo, à meia-noite. De domingo para Segunda. Logo, não é Domingo, é Segunda. Às zero horas. Ou Domingo. Às vinte e quatro.
Abstract painting
«On Abstract Painting
or
'I don't Get it!'
I've often seen people stare at an abstract painting, then turn to their friend and say "I don't get it", as if they were looking at a blackboard of mathematical equations by Einstein. But it's not difficult to understand at all. An abstract painting is a painting that doesn't look like anything. It doesn't look like a book, or a tree, or a person. It just looks like paint.
You may say 'then what's the point?' Let me explain to you.
You have two lines
Line "A" is a smooth 's' shaped curve
Line "B" is a jagged line like a streak of lightning.
Which is more soothing?
If you answered seriously you said "A". But how can a line on a piece of paper have emotion or meaning? Yet you just said it did!
Question 2. Imagine in your mind 2 paintings:
Painting "A" is a light pastel yellow painted circle in a pink square
Painting "B" is a dark grey painted circle in a black square.
Which of the 2 appears happier in mood? If you answered like most you chose "A". But how can pure color be happy or sad? Yet you just said it did!
And when you get a very sensitive painter that has practiced his art for decades and that expresses his feelings not only through line and color, but through composition, brushstroke technique, shapes, depth perception, etc. etc. etc., you can get a very stirring and emotional painting; yet, it still does not look like a book, or tree, or a person.
In fact, without any pictorial boundaries getting in the way, the painting can communicate its mood, or feeling often even quicker than so called realism paintings.
You may have looked at abstract paintings and said, "My kid can do that." But trust me, when it comes to the few that are extremely talented in this type of art, your child CANNOT do that. Not even the 95% of OTHER abstract painters trying all their lives to do that - can do that!
Now go look at that abstract again.»
Tirado daqui.
or
'I don't Get it!'
I've often seen people stare at an abstract painting, then turn to their friend and say "I don't get it", as if they were looking at a blackboard of mathematical equations by Einstein. But it's not difficult to understand at all. An abstract painting is a painting that doesn't look like anything. It doesn't look like a book, or a tree, or a person. It just looks like paint.
You may say 'then what's the point?' Let me explain to you.
You have two lines
Line "A" is a smooth 's' shaped curve
Line "B" is a jagged line like a streak of lightning.
Which is more soothing?
If you answered seriously you said "A". But how can a line on a piece of paper have emotion or meaning? Yet you just said it did!
Question 2. Imagine in your mind 2 paintings:
Painting "A" is a light pastel yellow painted circle in a pink square
Painting "B" is a dark grey painted circle in a black square.
Which of the 2 appears happier in mood? If you answered like most you chose "A". But how can pure color be happy or sad? Yet you just said it did!
And when you get a very sensitive painter that has practiced his art for decades and that expresses his feelings not only through line and color, but through composition, brushstroke technique, shapes, depth perception, etc. etc. etc., you can get a very stirring and emotional painting; yet, it still does not look like a book, or tree, or a person.
In fact, without any pictorial boundaries getting in the way, the painting can communicate its mood, or feeling often even quicker than so called realism paintings.
You may have looked at abstract paintings and said, "My kid can do that." But trust me, when it comes to the few that are extremely talented in this type of art, your child CANNOT do that. Not even the 95% of OTHER abstract painters trying all their lives to do that - can do that!
Now go look at that abstract again.»
Tirado daqui.
quinta-feira, 4 de novembro de 2004
Nota:
Claro que as maquetes do João e os Móveis Correia surgem como alternativa a esta desilusão. Usei-os porque isto é a blogosfera, e são já um clássico por estas bandas. Goste-se ou não da tua arquitectura (coisa que não posso dizer porque nunca a "vivi") é evidente que é algo que nasce de uma vontade forte. E já agora acrescento o Livro de Obra também, e os fascinantes relatos do crescimento da "coisa". Esse pilares de betão na fachada, por exemplo, é algo que não consigo identificar com nada, é novo. E portanto, só por isso, já valeu a pena a sua construção. Se calhar noto uma influência «Vicentiana» (o termo existe? pode usar-se?): o fascínio pela manipulação dos materiais «vulgares», e modos de expressão correntes. O gesto que é aparente nesse edifício é uma manipulação hábil do elemento «pilar de betão» (merda, não estou a gostar de escrever isto, parece que me coloco numa posição qualquer que não me agrada, de falta de humildade). Outros, para se tentarem colocar no mapa, escolheriam um material invulgar de revestimento, por exemplo. E essa tua atitude remete para um teu texto que foi publicado no JA, que me lembro bem: a arquitectura como a arte do possível.
A Arquitectura, os panfletos imobiliários, as maquetes do João e os Móveis Correia
«A nossa preferência pelas casas é porque nelas a arquitectura ainda hoje goza de uma certa liberdade, pois o resto é tão regulamentado, tão seriado.»
Manuel Aires Mateus, em entrevista à Arquitectura e Vida 54, Novembro 2004
Curiosa condição a que se vive hoje. Nunca a arquitectura esteve tanto na moda. O próprio Eduardo Prado Coelho disse-o, portanto deve ser verdade. Hoje a arquitectura passeia-se com a tranquilidade de quem está em casa nas páginas dos jornais. Por todo o lado é difundida. Gehry vem cá, e Santana não perde a oportunidade para se deixar fotografar ao seu lado; Foster vem cá, e Guta Moura Guedes fala do quarteirão do Design; Renzo Piano passa de raspão e deixa um mega-projecto habitacional em Braço de Prata; Siza projecta e Santana referenda; e entretanto o Taveira continua à solta.
A curiosidade da condição relaciona-se com o que está a acontecer à arquitectura por causa disto. Nunca a representação da arquitectura foi tão sedutora. Alguém, que não arquitecto, perde um segundo a olhar para um alçado de Frank Lloyd Wright? Ou para uma axonometria de Corbusier? Não, porque esses desenhos eram o meio, o veículo, um caminho para tentar explicar uma intenção. Hoje esse desenho passou a ser mais importante do que o que representa. A imagem tomou conta do objecto. Paradoxalmente, e isso é muito frequente, hoje acontece que projectos já construídos continuem a ser divulgados através de imagens virtuais. Porquê?
Como diz Aires Mateus, a arquitectura está excessivamente seriada e regulamentada. Não apenas nos aspectos técnicos da construção, nem nos requisitos programáticos que se instituiram, mas também no gosto que se difunde. Basta dar uma volta na Expo (peço desculpa, sou reaccionário, para mim será sempre "a Expo") para se constatar a uniformização pobre do gosto dos edifícios de habitação. Há uma cartilha que é seguida, uma cartilha que parece agradar ao "cliente" e à agência imobiliária.
Como é que isto aconteceu? Porque razão coabitam estes dois fenómenos? Por um lado parece haver um interesse generalizado pela arquitectura, mas por outro esse interesse revela-se num nivelamento da ideia de arquitectura.
Acredito que a culpa está nos arquitectos. O facilitismo da produção de imagens retirou espaço para a invenção. Para o desejo, a vontade, a ideia. Há um contraste claro entre quem usa uma maquete para comunicar uma ideia, e entre quem a usa como objecto central da sua criação. Há um contraste claro entre quem deita as maquetes todas para o lixo depois da obra estar concluída (porque obviamente perderem a sua utilidade), e entre quem as guarda numa redoma para exposição ao público. As únicas maquetes que merecem ser guardadas são as que representam projectos não construídos. As outras só servem para iludir. Perder esta atracção pela perfeição da representação é meio caminho andado para o assumir da coisa construída.
Calma, calma. Não quero que andemos todos a "inventar" em cada esquina. Tenho uma consideração muito grande pela ideia do "pronto-a-vestir", pela arquitectura anónima mas competente. Os Terraços de Bragança, por exemplo. A cidade é feita por esses bocados que se juntam, que não querem o palco só para eles. No entanto é impossível deixar de reparar que a arquitectura se deixou encurralar pelas grandes estrelas. Há uma certa polarização radical das ideias. Ou seja, tudo o que são ideias relevantes de arquitectura só existem nos grandes projectos dos grandes mestres. A arquitectura da pequena escala, do pequeno orçamento, aquela que não aparece nas revistas nem nos portfolios, não admite ideias, só admite o cumprimento regrado dos preceitos da cartilha. O cliente assim o quer, o promotor assim o quer, o arquitecto assim descansa. Para quê ter ideias se ninguém as vai ver? Para quê ter ideias se não vão ser publicadas? Para quê ter ideias se isso não vai trazer a fama, e provavelmente vai entrar em conflito com quem está a pagar a coisa?
Tudo isto incomoda. O aburguesamento do gosto e a demissão do arquitecto. Helena Roseta como presidente. Manuel Vicente arredado da sala de aula. O 3D Studio como brinquedo preferido. A uniformização. A uniformização. A uniformização. O branco igual. A «profissionalização». O «modo de fazer». O é assim. É assim.
Manuel Aires Mateus, em entrevista à Arquitectura e Vida 54, Novembro 2004
Curiosa condição a que se vive hoje. Nunca a arquitectura esteve tanto na moda. O próprio Eduardo Prado Coelho disse-o, portanto deve ser verdade. Hoje a arquitectura passeia-se com a tranquilidade de quem está em casa nas páginas dos jornais. Por todo o lado é difundida. Gehry vem cá, e Santana não perde a oportunidade para se deixar fotografar ao seu lado; Foster vem cá, e Guta Moura Guedes fala do quarteirão do Design; Renzo Piano passa de raspão e deixa um mega-projecto habitacional em Braço de Prata; Siza projecta e Santana referenda; e entretanto o Taveira continua à solta.
A curiosidade da condição relaciona-se com o que está a acontecer à arquitectura por causa disto. Nunca a representação da arquitectura foi tão sedutora. Alguém, que não arquitecto, perde um segundo a olhar para um alçado de Frank Lloyd Wright? Ou para uma axonometria de Corbusier? Não, porque esses desenhos eram o meio, o veículo, um caminho para tentar explicar uma intenção. Hoje esse desenho passou a ser mais importante do que o que representa. A imagem tomou conta do objecto. Paradoxalmente, e isso é muito frequente, hoje acontece que projectos já construídos continuem a ser divulgados através de imagens virtuais. Porquê?
Como diz Aires Mateus, a arquitectura está excessivamente seriada e regulamentada. Não apenas nos aspectos técnicos da construção, nem nos requisitos programáticos que se instituiram, mas também no gosto que se difunde. Basta dar uma volta na Expo (peço desculpa, sou reaccionário, para mim será sempre "a Expo") para se constatar a uniformização pobre do gosto dos edifícios de habitação. Há uma cartilha que é seguida, uma cartilha que parece agradar ao "cliente" e à agência imobiliária.
Como é que isto aconteceu? Porque razão coabitam estes dois fenómenos? Por um lado parece haver um interesse generalizado pela arquitectura, mas por outro esse interesse revela-se num nivelamento da ideia de arquitectura.
Acredito que a culpa está nos arquitectos. O facilitismo da produção de imagens retirou espaço para a invenção. Para o desejo, a vontade, a ideia. Há um contraste claro entre quem usa uma maquete para comunicar uma ideia, e entre quem a usa como objecto central da sua criação. Há um contraste claro entre quem deita as maquetes todas para o lixo depois da obra estar concluída (porque obviamente perderem a sua utilidade), e entre quem as guarda numa redoma para exposição ao público. As únicas maquetes que merecem ser guardadas são as que representam projectos não construídos. As outras só servem para iludir. Perder esta atracção pela perfeição da representação é meio caminho andado para o assumir da coisa construída.
Calma, calma. Não quero que andemos todos a "inventar" em cada esquina. Tenho uma consideração muito grande pela ideia do "pronto-a-vestir", pela arquitectura anónima mas competente. Os Terraços de Bragança, por exemplo. A cidade é feita por esses bocados que se juntam, que não querem o palco só para eles. No entanto é impossível deixar de reparar que a arquitectura se deixou encurralar pelas grandes estrelas. Há uma certa polarização radical das ideias. Ou seja, tudo o que são ideias relevantes de arquitectura só existem nos grandes projectos dos grandes mestres. A arquitectura da pequena escala, do pequeno orçamento, aquela que não aparece nas revistas nem nos portfolios, não admite ideias, só admite o cumprimento regrado dos preceitos da cartilha. O cliente assim o quer, o promotor assim o quer, o arquitecto assim descansa. Para quê ter ideias se ninguém as vai ver? Para quê ter ideias se não vão ser publicadas? Para quê ter ideias se isso não vai trazer a fama, e provavelmente vai entrar em conflito com quem está a pagar a coisa?
Tudo isto incomoda. O aburguesamento do gosto e a demissão do arquitecto. Helena Roseta como presidente. Manuel Vicente arredado da sala de aula. O 3D Studio como brinquedo preferido. A uniformização. A uniformização. A uniformização. O branco igual. A «profissionalização». O «modo de fazer». O é assim. É assim.
Resolução:
Tentar, com todos os meios, evitar começar frases com "E", "Mas", "Contudo", "Talvez", "Porém", "Etc.".
Freitas II
E há mais. Freitas disse que, basicamente, «Bush» só teve uma ideia, a ideia do combate ao terrorismo, que conseguiu passar. O «Senador Kerry», por seu lado, é um «intelectual», um homem «culto», e que tinha no seu programa «25 brilhantes ideias». Ora, Bush ganhou porque ninguém consegue reter 25 «brilhantes ideias». Mas, professor, Kerry é um «intelectual»? Mas que género de «intelectual»? Talvez um Derrida, não, promovendo a destruição do discuro e da total falta de conteúdo objectivo das palavras? Talvez isso explique o seu flip-flopping constante. Não sei. Ficamos com esta. O «Senador Kerry» era um «intelectual».
E o Freitas também
Outra vez na Sic-Notícias. Freitas do Amaral, comentando as eleições, falava de «Bush» e do «Senador Kerry». Poupem-me.
Mas não dá para calar este doido de vez?
«Bush não pode ser indiferente ao facto de ter o mundo inteiro contra ele, e metade da América contra ele, ainda por cima a melhor América.»
Mário Soares, na Sic-Notícias
Mário Soares, na Sic-Notícias
Agora sou obrigado a uma dupla citação
O plano era simples: citar João Pedro George, que depois de um texto absolutamente obrigatório sobre Possidónio Cachapa (mas que se fosse sobre outro qualquer seria obrigatório na mesma) descreve a sua noite eleitoral. Acontece que agora sou obrigado não só a citá-lo mas também ao Pedro Mexia, porque é a via que tenho para citar o maradona, já que não tive acesso à conversa. Tudo sobre esta coisa de ser de direita.
terça-feira, 2 de novembro de 2004
ainda para aqueles que não perceberam à primeira
«I believe totally in a Capitalist System, I only wish that someone would try it»
«Democracy is the opposite of totalitarianism, communism, fascism, or mobocracy»
Toma lá, Corbu. Toma lá, Oscar. Toma lá, Rem. E toma lá mais: «A free America, democratic in the sense that our forefathers intended it to be, means just this: individual freedom for all, rich or poor, or else this system of government we call democracy is only an expedient to enslave man to the machine and make him like it.» (Notar bem a palavra individual.) Notar bem.
segunda-feira, 1 de novembro de 2004
{ }
«Abrir vazios é uma dimensão fundamental da arquitectura de hoje.»
Manuel Salgado, em entrevista à Arquitectura e Vida 53, Outubro 2004
Manuel Salgado, em entrevista à Arquitectura e Vida 53, Outubro 2004
James Hetfield
Escrevi o post anterior ao som de Metallica. Há muito tempo que não ouvia Metallica, a única banda de que fui seriamente fã durante a adolescência. Mesmo isso ganha outro sentido. (A música que se segue, que obviamente me recuso a referenciar, foi motivo para grandes debandadas de fãs, irados com a comercialização do quarteto da Califórnia. Sempre achei que foi o exactamente o contrário: foi preciso tomates, garanto, para fazer uma coisa destas. E tão boa.)
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
and nothing else matters
Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
and nothing else matters
Trust I seek and I find in you
Every day for us something new
Open mind for a different view
and nothing else matters
never cared for what they do
never cared for what they know
but I know
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
and nothing else matters
never cared for what they do
never cared for what they know
but I know
Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
Trust I seek and I find in you
Every day for us, something new
Open mind for a different view
and nothing else matters
never cared for what they say
never cared for games they play
never cared for what they do
never cared for what they know
and I know
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
No, nothing else matters
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
and nothing else matters
Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
and nothing else matters
Trust I seek and I find in you
Every day for us something new
Open mind for a different view
and nothing else matters
never cared for what they do
never cared for what they know
but I know
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
and nothing else matters
never cared for what they do
never cared for what they know
but I know
Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
Trust I seek and I find in you
Every day for us, something new
Open mind for a different view
and nothing else matters
never cared for what they say
never cared for games they play
never cared for what they do
never cared for what they know
and I know
So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
No, nothing else matters
mudança constante
Sempre tive a tendência para relativizar. Tudo. Encontro sempre na mudança constante ("mudança constante", bela expressão) de pontos de vista um prazer que se assemelha ao da criança que descobre um brinquedo novo. O referencial não tem a origem definida, e isso agrada-me. Se estou com A, defendo B, e se estou com B, defendo A. Pelo meio aprende-se e apura-se a máquina. Os poucos assuntos que não eram alvos de relativismos foram aos poucos caindo, e hoje não conheço nenhum. Posso dar o exemplo da arquitectura, mas isso não chegaria. Esta atitude não tem explicação. Nem revela falta de convicções, entou convicto. O que é uma convicção? Convicção política? Moral? Artística? Não servem para nada. Einstein provou-o numa expressão. Tudo é relativo.
Acontece que desde há algum tempo vivo com algo que não se sujeita a qualquer tipo de relativismos. Não é fácil de explicar. É o meu "0,0,0" há muito flutuante. O ponto de onde as outras coisas se medem. E se comparam. Claro que isto dá um grau de liberdade para os outros relativismos ainda maior. Tudo o que não precise de pôr em causa a origem perdeu o ténue fio que o agarrava, e soltou-se, ficando alvo fácil das brisas e correntes. Quando se tem uma âncora deste tipo a confiança cresce. Isto espanta quem vê de fora, que esperava uma acalmia do estado do mar, e vê a ondulação subir de meio metro para dois metros. Fica por explicar que apesar do estado do mar se ter agravado, nunca se tinha atingido tal estabilidade. E é verdade que isto tudo me deixa por vezes como boi para palácio, pondo seriamente em cima da mesa a hipótese de existência do absoluto.
Acontece que desde há algum tempo vivo com algo que não se sujeita a qualquer tipo de relativismos. Não é fácil de explicar. É o meu "0,0,0" há muito flutuante. O ponto de onde as outras coisas se medem. E se comparam. Claro que isto dá um grau de liberdade para os outros relativismos ainda maior. Tudo o que não precise de pôr em causa a origem perdeu o ténue fio que o agarrava, e soltou-se, ficando alvo fácil das brisas e correntes. Quando se tem uma âncora deste tipo a confiança cresce. Isto espanta quem vê de fora, que esperava uma acalmia do estado do mar, e vê a ondulação subir de meio metro para dois metros. Fica por explicar que apesar do estado do mar se ter agravado, nunca se tinha atingido tal estabilidade. E é verdade que isto tudo me deixa por vezes como boi para palácio, pondo seriamente em cima da mesa a hipótese de existência do absoluto.
domingo, 31 de outubro de 2004
Ouvido
«Temos de ser contra tudo, com mas com a devida ressalva de ser também contra o Bloco de Esquerda.»
sábado, 30 de outubro de 2004
Wouldn't it be great?
-Wouldn't it be great if you could ask a woman what she's thinking?
-What a world that would be if you could just ask a woman what she's thinking.
Seinfeld, Jerry and George, «Good News, Bad News»
-What a world that would be if you could just ask a woman what she's thinking.
Seinfeld, Jerry and George, «Good News, Bad News»
sexta-feira, 29 de outubro de 2004
pelos caminhos da fé II
«(...) E a pergunta que me ficou quando, em corte abrupto, a imagem passa ao negro, no final, deixando a fábula suspensa, é a pergunta sobre o verso e o reverso das figuras de evasão. Se o inferno não nos metesse tanto medo, o paraíso seria tão desejado?(...)»
João Bénard da Costa, in Público, 29.10.04, sobre «The Village», de M. N. Shyamalan
João Bénard da Costa, in Público, 29.10.04, sobre «The Village», de M. N. Shyamalan
pelos caminhos da fé
Há uns anos, uma tia-avó minha alertava: «Cuidado com a Comunhão e Libertação, ao pé deles a Opus Dei não passa de uns meninos de coro.» Confesso que na altura não percebi. Percebo agora, com o caso do comissário italiano. Então, como hoje, a minha tia-avó mostrou ser uma freira atenta.
quinta-feira, 28 de outubro de 2004
Voting for president is a lot like sex
Já deu para falar de sexo, de filmes porno, de Sheryl Crow e de uma «escritora giríssima». As eleições norte-americanas por Pedro Mexia.
quarta-feira, 27 de outubro de 2004
sou do fado
Sinto uma necessidade de inovar permanentemente. Minto. Não se trata de inovar, mas de trabalhar no presente, com as coisas de hoje. O "hoje" está sempre a mudar. E quem vive "hoje" é apelidado de progressista. Assim penso. Uma parte do passado não me interessa. Acho este país irremediavelmente atrasado. Velho. Lento. Mas depois oiço Mariza. E com ela o Fado. O Fado de hoje. Que é igual ao de ontem. Mas completamente diferente. E a dúvida desce, como uma neblina que ilude a sirene.
segunda-feira, 25 de outubro de 2004
Tudo isto é complexo
As contradições estão presentes desde o início. Conto três, sem esforço: é contraditório o próprio nascimento do blogue; é contraditório o design, demasiado minimal para a estética que o nome representa; é contraditório o facto deste blogue ter um nome que faz uma referência à arquitectura, apesar de não ser dedicado à arquitectura (exclusivamente).
Complexidade e Contradição
Robert Venturi publicou-o, com o título Complexidade e Contradição em Arquitectura. Mais tarde reconheceu que, face à teoria nele contida, o livro deveria ter-se chamado Complexidade e Contradição na Forma Arquitectónica. A tentação foi de levar o mais longe possível a ideia. Este blogue tira-lhe a arquitectura, fica só a caracterização. E fica bem.
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