domingo, 30 de dezembro de 2007

The Ivo Canelas Show



Não devemos cair na tentação de esperar de Call Girl cinema de autor, a não ser se percebermos que uma das características de António-Pedro Vasconcelos é a sua aptidão para nos entreter e bem. Estamos perante um exemplo de cinema comercial português, uma categoria que não conta com muitos exemplares que se apresentem, situação que tem contribuído para o definhamento de uma suposta «indústria» cinematográfica portuguesa. Call Girl, que é honesto no seu pressuposto, funciona bem e não depende em exclusivo de Soraia Chaves para cativar o público - embora esta taxa seja muito alta no sector masculino da audiência, não há como negar esta evidência. Passemos às fragilidades: o argumento, ou se quisermos, o trabalho de escrita. Nem só de diálogos vive o argumentista, e se em Call Girl as palavras das personagens não nos envergonham - sobretudo no calão da gíria masculina - já a trama que lhe serve de base é algo simplista e pouco elaborada. Como o são também as personagens, e é aqui que Soraia Chaves sai a ganhar porque para além de Maria só a personagem do inspector da PJ interpretado por Ivo Canelas - já lá iremos - se pode orgulhar de não ser totalmente bidimensional. Até um certo ponto é pena que António-Pedro Vasconcelos denote uma tendência para mostrar e contar em demasia - e não falo da pele da protagonista que nunca chega a fartar - fazendo um filme que não dá espaço para a surpresa e que não convida o espectador a entrar no jogo: tudo é explicado como se faz às crianças. A única surpresa que o filme nos dá, uma espécie de twist sem consequências, é tão descabido que mesmo que se não fosse um spoiler não mereceria mais do que uma linha. Já o trabalho dos actores está uns furos acima do dos argumentistas. Nicolau Breyner é perfeito na pele do autarca simplório e bem intencionado mas muito permeável às pressões; Ana Padrão tem uma brevíssima passagem pelo ecrã que deixa saudades (é um crime contratá-la para aparecer 5 minutos, como disse ontem o Pedro Mexia no Público); José Raposo é consistente no papel de colega mais velho de Ivo Canelas, como o é Maria João Abreu no papel de amante quarentona e carente do autarca; até Sofia Grillo, cuja presença é ainda mais breve do que a de Ana Padrão, deixa boa impressão. Para esquecer só mesmo Joaquim de Almeida, e este é um dos poucos pontos em que estou de acordo com o Pedro Mexia. Aqui chegados, sobram Soraia Chaves e Ivo Canelas. Se de Soraia Chaves já muito se tem falado, já Ivo Canelas - que tem um nome que apetece repetir várias vezes, este Ivo Canelas - não tem tido a merecida projecção. E a verdade é que Ivo Canelas é o grande solista de Call Girl, com uma interpretação que rivaliza em magnetismo com Soraia Chaves, o que não é dizer pouco, num tipo de papel que costuma ser uma armadilha para os actores por ser uma personagem algo espalhafatosa, gingão, hiper-confiante e ruidoso. Canelas fá-lo com mestria. Por favor contratem este tipo para mais filmes. Numa nota um bocadinho mais geek, julgo que o apartamento de Maria se situa num edifício do Parque das Nações desenhado por Manuel Aires Mateus, pormenor que não posso garantir, mas que a ser verdade não deixa de ter o seu interesse.

Ou seja, Call Girl é um filme bem conseguido que acrescenta aos pecados originais do cinema comercial mais uns quantos que lhe vêm da inexperiência portuguesa no campo, que não chegam apesar disso para ferir de morte o exercício. E Soraia Chaves assume-se por direito como o sex-symbol do cinema português, o que é muito agradável: já estávamos à demasiado tempo a viver às custas de Alexandra Lencastre.