domingo, 3 de setembro de 2006

Sei que sou o que sonhei

A discussão sobre a «regionalização» e a «descentralização» há muito que se arrasta em Portugal. É um daqueles temas onde parece que é bonito haver um grande concenso politicamente correcto: estamos todos a favor, só não sabemos como. Ora, a Igreja Católica em Portugal há muito que está à frente do seu tempo, e os referidos conceitos estão serenamente enraízados no seio da sua cultura. Basicamente, e tal como acontecerá com a descentralização, a Igreja Católica é politeísta, usando-se de um mui avançado politeísmo por delegação de competências. Essa hierarquia é bem visível nos meses de verão por esse país fora, mais especificamente, por esse país dentro. Há festa, há baile, há música em honra das variadíssimas lusas Nossas Senhoras (que são uma e uma só, para quem acha que a Santíssima Trindade é difícil de ententer). O ambiente é feudal: a aristocracia rural cruza os portões das suas quintas e junta-se ao povo na ginginha, no bagaço e no calo. Primas que no ano passado ainda não tinham maminhas, este ano já usam mini-saia. Um tio que no ano passado apanhou um pifo de caixão à cova, este ano está com um pifo de caixão à cova. Um amigo vem de Lisboa e traz a namorada que faz furor, o Zé das bifanas caiu para cima dela acidentalmente três vezes só durante o medley. Há uma grande sensação de classe, condições sociais fictícias que se tornam reais se todos nelas acreditam. A terra não é grande, e a consanguinidade ameaça. Só se vê primos, engates dos primos, e empregados dos primos. Tudo regado ao ar livre, a sessenta cêntimos a imperial. Pela noite dentro, pois não há ninguém para se queixar do barulho, e mesmo se o fizesse não teria grande sorte: o destacamento da zona da GNR está todo encostado ao balcão das ginginhas, amparando-se os agentes mutuamente. Foi precisamente numa dessas celebrações regionais que julgo ter assistido ontem, e penso não me enganar, a uma actuação, ao vivo, a cores, com caspa e tudo, para chegar finalmente ao propósito do post, do há muito esquecido e abandonado, injustamente, terá de se ressalvar, Serafim Saudade. O quê, ele não existe? Também a Nossa Senhora da Piedade Infinita do Monte dos Pobres também não, e não é por isso que se deixam de rebentar foguetes em sua honra.