O sítio mais masculino do mundo é um salão de beleza. Não o salão de beleza, mas um salão de beleza: o barbeiro onde corto o cabelo desde que me lembro de cortar o cabelo. É gerido por dois sócios que, reza a lenda, estão desavindos há décadas. Trabalham lado a lado diariamente, são ambos pessoas cordatas e bem educadas, mas aparentemente não se falam. Ocupam as cadeiras das pontas de uma fila de cinco. A discussão, conta-se, nasceu da vontade de um em fazer obras no espaço gerando a oposição do outro. Olhando à volta, não custa a crer que tenha sido assim. Dá a sensação de que tudo está como sempre foi: as cadeiras são em pele boa mas estão rotas, os painéis são em madeira nobre mas estão partidos, as torneiras são topo de gama - gama de 1974. O sítio transborda heterossexualidade. Ao desprezo pela decoração de interiores junta-se um silêncio circunspecto que é frequentemente cortado para se falar de generalidades: política, futebol, o antigamente, a terra, o totobola que um vizinho ganhou. Nunca de assuntos pessoais: a barba e o cabelo são cortados porque «já está a ficar grande» ou «vem aí o calor». Os diálogos vão assim:
- Então, vamos dar aqui um corte?
- Sim, um corte grande.
Passados vinte minutos:
- Então, assim está bem?
- Está, obrigado.
As considerações estéticas são todas de carácter reaccionário: o objectivo é sempre repor o cabelo ao estado que apresentava no passado, lamentando que ele tenha crescido revolucionariamente entretanto. A ordem é preferida ao progresso; a certeza (cabelos curtos) promovida, a incerteza (cabelos compridos) combatida. A passagem do tempo é condenada, mas sem grande agitação. As amarguras da vida são enfrentadas com um solene «pois». Vai-se andando. Daqui a nada está aí o verão.
Pela porta de vidro vêem-se as árvores lá fora, que vão mostrando as estações do ano e marcam o bairro com uma cadência de cheiros reconfortante. Por trás das árvores fica uma igreja. À hora certa os sinos tocam. Às vezes passa por lá o carteiro. Muitas vezes paga-se depois, porque não há trocado. Crianças como eu levam agora lá os filhos, netos de clientes antigos. O bairro não mudou assim tanto. O bairro mudou completamente. Aqueles espelhos são exactamente os mesmos. Cresci a olhar para eles, a olhar para mim, sob o pretexto de estar a acompanhar o corte do cabelo. Quase que vejo ali a minha mãe: a franja não é tão curta, as orelhas não podem ficar destapadas, o meu irmão na cadeira do lado. Na rua de trás morou a minha bisavó (mãe da mãe da minha mãe) até morrer, de mão dada à minha tia-avó, ia dormir porque estava cansada. Lembro-me de lá ir, do sol a entrar por uma janela e de um corredor que me parecia comprido (devia ser curto). Noutra rua acima fica a pastelaria onde íamos comer éclairs de chantilly, os preferidos da minha mãe. Mais à frente fica o prédio onde a minha avó viveu, tarde, e viu morrer o meu avô. Daquele apartamento via-se a cidade toda, uma vista deslumbrante sobre o Tejo, do castelo até à ponte, dali era impossível não se amar isto.
Quando o movimento abranda, os cabelos que caíram ao chão são varridos. «Você tem muito cabelo, devia fazer negócio disto», diz-me, como sempre. A sala tem umas escadinhas que levam a uma cave. De cá de cima vê-se que lá em baixo há um bar, talvez uma memória de uma ocupação anterior. Nunca lá fui.