quarta-feira, 9 de abril de 2008

O fado, o periquita branco e o atum em puré de maçã

O fado é dos géneros musicais - se é um género musical - mais subtilmente codificados. Aparentemente é uma expressão quase bidimensional, sem profundidade, que não demora mais do que dois temas a apreender. Por ser formalmente muito rígido naquilo que é a sua forma «tradicional» - e «tradicional» é uma palavra muito cara no «meio» - o ouvinte cai facilmente na tentação de tomar a parte pelo todo e emite com a rapidez de uma tocha olímpica - desde que não transportada por Pedro Pauleta - o seu juízo muitas vezes final. Como se diz na gíria, gera ódios ou paixões infinitas. Sendo que para quem nunca o chega a compreender seja bastante mais fácil gerar amores se o cidadão morar em Alfama ou for aficionado tauromáquico, o que é ilustrativo dos preconceitos vigentes, pelo menos vigentes, e vamos interpretar isto como meramente ilustrativo, em mim. Que o fado é formalmente rígido é um facto e não vale a pena demorarmo-nos muito tempo aí, até porque a maioria das tentativas que me chegaram ao ouvido de fugir a essa rigidez resultaram em disparate. Então o que pode fazer um pessoa em abstracto - eu, por exemplo, for the sake of argument - «gostar» de um fado? O mesmo que faz alguém gostar de um blues. Ou seja, obrigado, um verso, um verbo, ou às vezes apenas um adjectivo. Se, absolutamente por acaso, há uma identificação momentânea entre o ouvinte e aquele que empresta a sua voz ao sofrimento, então há eficácia, e toda aquela «rigidez» ou «reaccionarismo» musical é colocada no devido lugar numa ordem qualquer das coisas. Eu não gosto de fado, não posso dizer que sim, longe disso (sou um urbano-chique que acha bem gostar de Camané, porque gosto, apesar daquela mania dele em aparecer nos comícios do Bloco). No entanto às vezes acontece que um determinado estado de espírito se vê reconhecido num tema à revelia do seu portador, e nesses casos não sou capaz de impedir uma sensação de conforto. Não sei se estamos perante um guilty pleasure - não me parece que Carlos do Carmo possa ser comparado aos Scissor Sisters - mas há-de ser alguma coisa com um grau de parentesco não muito distante. Seja como for, não vou ler teses de mestrado sobre o tema.

Este texto foi patrocinado pelo bar aberto da Festa do Peixe, que se está a passar a dois quarteirões da minha casa, e pelo meu amigo fadista que me estendeu amigavelmente o convite (obrigado Rodrigo - não esse, dou-me lá com gente de rabo de cavalo, outro, bem mais talentoso). E pelo menu degustação penta do Gemelli, que é fabuloso.