sexta-feira, 25 de março de 2005

Crónica de Sexta-Feira Santa

«Sapos? Quais sapos?

Uma vez, em conversa sobre o épico emocional Magnólia, sugeri uma possível obsessão religiosa do realizador. Uma rapariga disse logo que não percebia tal observação. "Ora, a chuva de sapos não engana", respondi, como quem aponta o óbvio. "Sapos?", espantou-se a rapariga, "o que é que os sapos têm a ver com religião?". Murmurei uma vaga frase sobre "pragas do Egipto". Mas a moça encolheu os ombros e pensou certamente que existem sempre patetas que vêem imensa coisa em coisa nenhuma.

Esse episódio é recorrente sempre que me acontece fazer uma referência bíblica, três pessoas ficam sem expressão, nitidamente sem perceberem. Mesmo alusões que julgava evidentes, como "filho pródigo" ou "estrada de Damasco", enfrentam um silêncio glacial. Quando explico, protestam: "Mas tu és católico, nós não temos que saber isso." Acontece que não se trata de convicções pessoais: o conhecimento de um módico de referências religiosas (sobretudo bíblicas) faz parte da cultura geral. Recentemente, um amigo trintão contou-me que nunca tinha sequer folheado a Bíblia. Quando fez anos, ofereci-lhe uma Bíblia dos Capuchinhos. Não para o evangelizar, mas para o rapaz perceber melhor, digamos, os filmes de Bergman, as canções de Johnny Cash, os romances de Graham Greene.

Com efeito, sem uma referência religiosa não entendemos parte significativa da cultura ocidental. Já nem digo os clássicos ou os mestres da pintura. Sem perceber o segredo de confissão não se entende Confesso, de Hitchcock (o filme foi um fiasco porque os espectadores protestantes achavam o enredo inverosímil). Sem conhecer o dogma não se entendem as profanações de Buñuel (que construiu A Via Láctea só com esse material). Sem cristianismo, não se entende Eliot, Fellini ou Messiaen (para referir artistas contemporâneos).

Repito não tem nada a ver com religião, tem a ver com cultura. Não é por vivermos o colapso do cristianismo que algumas imagens, metáforas e alegorias cristãs desaparecem da memória. O lastro cultural do cristianismo permanece mesmo que o cristianismo definhe. É por isso que o laico Régis Debray defendeu recentemente que a História da Religião deve ser ensinada nos liceus.»

Pedro Mexia, DN 25.03.05

Dei por mim há pouco tempo a tentar explicar a minha falta de Fé (com maiúscula) usando precisamente este argumento: para mim o cristianismo sempre foi uma questão cultural. Surpreendi-me ao afirmar isto. Não tinha, não tive, consciência desta atitude que percebi, retrospectivamente, ser verdadeira. Foi quando comecei a ser confrontado de uma forma mais consequente com as questões puramente religiosas do cristianismo que percebi que a minha fé era muito limitada. Quem tem uma vida religiosa sabe que esta atitude, reconhecer a limitação da fé, é quase necessária para tê-la. E durante muito tempo vivi bem com isso, pois à minha volta todos proclamavam a sua pouca fé fazendo votos e esforços para vê-la crescer. Ter fé, aliás, é viver para alimentá-la. Mas com o passar do tempo fui perdendo a capacidade para alimentar essa fé ao mesmo tempo que, talvez devido a essa distância, me ia interessando mais pelo contexto e herança cultural do cristianismo. O que me espantou foi a riqueza desse património cultural que desconhecia, pois a educação na fé não passa por aí. Parece um paradoxo, mas não é. A nossa relação com a cultura é sempre filtrada pelo espírito crítico. O que mais nos desperta culturalmente é sempre aquilo que nos desafia e interpela. Ora, religiosamente, a Bíblia não é cultura: é. Todas as passagens são ensinamentos, todas as personagens são exemplos, todas as palavras são literais. A Bílblia, na catequese, é um código de conduta. Um católico reza a Bíblia, não a estuda. Por isso a atitude que o Pedro Mexia bem expõe nesta crónica (a recusa da abordagem à religião como cultura) não é exclusiva dos não-crentes. No caso específico do catolicismo há ainda que ter em conta a (não) relação que os fiéis têm com os textos sagrados. Eu sempre tive uma relação atribulada e, talvez não surpreendentemente, essa relação é mais proveitosa quando me sinto menos crente. Porque ler um texto sabendo que ele é sagrado e quase dogmático torna-se aborrecido. E nasce o perigo (que está na origem desta separação da religião e da cultura) de se considerar que aqueles temas são do foro meramente religioso, esquecendo que aquilo a que nós chamamos de cultura tem uma história construída sobre essas estórias, mesmo quando é para as renegar. Vivemos numa época particularmente sensível à questão da laicidade, mas não devemos deixar que isso sirva para apagar a nossa própria cultura, querendo reescrevê-la à margem do divino.

Não por acaso (certamente) a coluna literária do Pedro Mexia de hoje dedica-se a José Tolentino Mendonça.