O Expresso de hoje traz uma entrevista com Gonçalo Byrne, uma entrevista com Eduardo Souto de Moura, e uma carta em jeito de direito de resposta de Manuel Aires Mateus. Vamos então às notas:
1. Gonçalo Byrne é um homem de quem é fácil gostar-se. Há nele uma qualquer sinceridade e ponderação no que diz que desculpam a falta de rasgo dos seus desenhos. Não é um arquitecto cuja obra me emocione particularmente, mas é alguém a quem devíamos ouvir mais frequentemente e com quem temos a obrigação de aprender qualquer coisa.
2. É sempre um prazer ouvir Souto de Moura. O seu discurso descomplexado e radicalmente pragmático é um óptimo equilíbrio para a cada vez mais insuportável meta-linguagem dos arquitectos. Como por exemplo a sua denúncia desta vaga de sustentabilidades que todos reclamam para os seus projectos: é preciso ser Souto de Moura a explicar que qualquer bom projecto pressupõe a sua sustentabilidade. É triste que tenhamos chegado a um ponto em que um edifício bem abrigado do sol de Sul é elevado a um supra-sumo daquelas merdas que o Al Gore anda a vender. No entanto, Souto de Moura diz na entrevista algo que me incomodou, e que tem a ver com os honorários dos arquitectos. Souto de Moura explica que os promotores em Portugal já se aperceberam que construir com um arquitecto bom sai ao mesmo preço do que construir com um arquitecto mau, pois a tabela é a mesma e os descontos são também eles tabelados. Bom. Primeiro vem a dúvida: não acredito que Souto de Moura esteja a falar a sério. Mas repensando a questão, e atendendo ao modo de pensar da classe dos arquitectos em Portugal, julgo que Souto de Moura não estará a mentir. Os arquitectos nunca gostaram do mercado; Byrne confessa na entrevista, por exemplo, o seu coração centro-esquerda sempre pronto a dar a outra face em prol do bem-público. A existência de uma tabela é uma aberração que nos está a sair muito cara. A nós, arquitectos, e a nós, clientes, porque a tabelação de preços vicia o mercado e prejudica, sobretudo, o consumidor de projectos. Não faz qualquer sentido que Souto de Moura cobre por um projecto o mesmo que eu cobraria pelo mesmo. Souto de Moura é um arquitecto infinitamente melhor do que eu, e essa infinitude na diferença de qualidade tem, obrigatoriamente e se queremos manter uma sociedade minimamente mentalmente saudável, de ser paga. A tabela, que, lembro, existe para regular a relação do Estado com o prestador de serviços, não sendo de todo vinculativa para os privados porque, apesar de tudo, ainda não chegámos à Venezuela apesar dos esforços de Otelo e companhia no calor de 75, é um dos factores que contribuem para a desvalorização do trabalho de arquitectura, sendo uma declaração pública sobre o valor de um serviço a priori de qualquer avaliação desse mesmo serviço. Ou seja, revolta-me que Souto de Moura não seja principescamente pago pelo que faz, sendo que aquilo que faz nem sequer é equacionável nas cabecinhas que elaboraram a malfadada Portaria de 7 de Fevereiro de 1972, alterada pela malfadada Portaria de 22 de Novembro de 1974, alterada pela malfadada Portaria de 27 de Janeiro de 1986, que julgaram que um projecto de arquitectura é um conjunto de plantas, cortes e alçados em três cópias em papel e uma em formato digital.
3. O Expresso da semana passada publicou um projecto de Manuel Aires Mateus e Frederico Valsassina para o Largo do Rato, e sobre ele escreveu uma série de estupidezes. Eu gosto particularmente daquele desenho, mas isso sou eu e a minha subjectividade que não têm, para este caso, qualquer interesse. O que me move a estas linhas é outra questão. Manuel Aires Mateus, neste seu direito de resposta hoje publicado, vem a público tentar esclarecer alguns dos equívocos nos quais o artigo incorre, chegando mesmo a anexar uma foto da maquete, bem mais bonita do que as inenarráveis montagens que o Expresso se dignou a produzir na semana passada. Ora, o que Manuel Aires Mateus não percebe é que, de certo modo, ele não tem legitimidade para fazer o que tentou fazer. Trata-se de um clássico caso de feitiço contra o feiticeiro. Na última década a arquitectura e os arquitectos aprenderam a usar a comunicação social para promoção pessoal e, mais grave, aprenderam a desenhar edifícios cujo fim principal tem sido a publicação - olhem para as plantas, as plantas senhores, e digam-se se é normal serem tão bonitas. Perceberam como funcionam os mecanismos da sedução visual, acentuaram o carácter hermético do seu discurso como forma de defesa por meio de desqualificação intelectual do interlocutor, e pelo caminho criaram um monstro. Monstro esse que agora começa a morder a mão ao dono e deseja caminhar pelas próprias pernas. As estupidezes que o Expresso publicou na semana passada (porque são estupidezes, vão ler aquela merda) são totalmente legítimas no contexto da relação perigosamente íntima que a arquitectura estabeleceu com os media. Agora aguentemo-nos.