domingo, 11 de março de 2007

No comboio com o Francisco José Viegas

(...) Sei que vou estar no comboio que partiu atrasado. A culpa não é só minha. É da minha Europa do sul, dos nossos hábitos incivilizados, da alimentação, do hábito de comer peixe, da nostalgia da sesta, da sombra dos jardins, da saudade que -- todo o ano -- tenho da praia, do queijo de São Jorge, da velocidade a que conduzo o carro. E é da preguiça, também. Às vezes parece-me congénita, mas só me culpo a mim. Vivi lá fora, sei que há diferenças; mas aquele discurso sobre «o modelo finlandês» é-me cada vez mais estranho, nunca vi que os meus conhecidos de Helsínquia ou de Rovaniemi ou de Turku fossem especialmente felizes ou, para ser sincero, mais felizes do que nós. Mesmo os hábitos de leitura na Islândia; invejo-os para nós, mas sei que anoitece cedo em Reykjavík (as livrarias são a última coisa a fechar no centro da cidade) e que, há uns anos, só se podia beber álcool ao fim-de-semana. Nós habituámo-nos a contar anedotas sobre o Salazar, a contar anedotas sobre o Samora, a rir das tragédias. Às vezes chego atrasado a uma reunião e peço desculpa, mas não devia. Não devia chegar atrasado, não devia sair da sala para fumar, não devia estar a meio da reunião a imaginar a cataplana de bacalhau. Não devia deixar para o dia seguinte. Não devia estar o ano inteiro à espera da praia. O discurso dos modernos é confrangedor, de qualquer modo, quando nos imaginam -- a todos -- a seguir o modelo finlandês. O milagre irlandês deixa-me indiferente, depois de ver que Dublin, a minha Dublin, se tornou irreconhecível, uma espécie de pesadelo de ficção científica, britanizada. Irrita-me a falta de cuidado, a falta de trabalho sério, a falta de respeito pelas leis, a facilidade com que se desculpa a preguiça. Mas sou preguiçoso, também. Tenho uma carga da velha Europa do Sul por todo o lado. Participei em muitas reuniões de uma multinacional para quem trabalhei durante década e meia. Eles eram ricos, poderosos, tomavam decisões, marcavam reuniões para o pequeno-almoço, às sete da manhã. Nós íamos, mas não estávamos felizes. (...)

A questão europeia, n'A Origem das Espécies