sexta-feira, 22 de maio de 2009

Dois euros e sessenta

Depois de um dia que não estava a correr da melhor forma, fui abordado ontem na rua por um homem que vinha apoiado numa bengala que dava apoio à sua perna esquerda em dificuldades. Quase não dei por ele até ouvir o tímido «O senhor, peço desculpa», que revelou uma patologia qualquer na fala que lhe atrasava as palavras, embora não fosse gaguez; era mais uma contorção facial no arranque das frases que lançou a dúvida sobre a sua sanidade mental. Não percebi imediatamente que ele me ia pedir dinheiro. O seu aspecto não era, à primeira vista, o do um mendigo, apesar do mau estado geral das suas roupas. A sua mão não estava estendida. Ele continuou: «O senhor vai-me desculpar, mas o senhor importa-se que eu lhe peça uma esmola?» Palavra que esta foi a construção frásica que ele usou. Nesta altura, passados apenas alguns segundos, comecei a reparar nos sinais que o identificavam como sem-abrigo: uma mancha de urina marcava-lhe as calças, os seus olhos revelavam um desconforto violento. Enquanto eu puxava da carteira, ele continuou: «eu tenho 62 anos, isto é uma vergonha». Parecia que falava mais para ele do que para mim e que aquela exteriorização o ajudava a lidar com a sua condição. Perguntei-lhe quanto queria. A resposta costuma ser «o que o senhor puder dispensar», ou «uns trocados para comer qualquer coisa», ou «1 euro para o bilhete» se estivermos numa estação de transportes. A resposta dele desarmou-me por completo: «Dois euros e sessenta». Nunca ninguém me tinha pedido «dois euros e sessenta». O homem terá tido consciência do carácter esdrúxulo do seu pedido e explicou: «olhe para mim, olhe para mim [eu olhei], eu gostava muito de cortar o cabelo.» Esta deve ser a fase mais dura: a fase em que um sem-abrigo ainda não abdicou da sua dignidade; que ainda se lembra o que é ser uma pessoa que não é marginalizada; que ainda gosta de «cortar o cabelo»; que ainda acha que «pedir uma esmola» é «uma vergonha». Nunca ninguém me tinha pedido dinheiro para cortar o cabelo. Abri a carteira e no bolso das moedas estavam exactamente dois euros e sessenta.