sábado, 12 de fevereiro de 2005

A divulgação da crítica

«(...) Para alguns, estes textos estarão mais perto da "divulgação" do que da "crítica". Não penso assim. Estes são textos de crítica de arquitectura onde pesa mais a instauração de um novo "senso comum" do que o enredamento sem fim em "transversalidades" ocas. A sua amplitude, e às vezes benevolência, significa também que o crítico não é hoje um "iluminado" mas alguém que anda com uma lanterna na mão.

O que toca num problema crucial para a crítica de arquitectura em Portugal. É que crítica e proselitismo não andam juntos. Enquanto falar de arquitectura nos jornais, em Portugal, for entendido como uma "missão" - e é - dificilmente a crítica levanta voo. Também por isso, por cima deste dilema por agora insuperável, este é um belo livro e um belo projecto para Portugal.»

Voltar a Acreditar, Jorge Figueira, Mil Folhas 12.02.05


Não dá para perceber se é propositado ou não, mas Jorge Figueira escolhe para título de crónica um slogan político (neste caso, ainda que irrelevante, slogan usado pelo Partido Socialista). Escreve sobre o mais recente livro de Manuel Graça Dias, "30 Exemplos (Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX)", colectânea dos seus artigos publicados no Expresso entre 2001 e 2004, que já tinha referido aqui. O que me dá um óptimo pretexto para (não) falar de política. Nos blogues, como na generalidade dos media, o período de campanha eleitoral arrasa qualquer tentativa de manter um discurso sereno sobre outro assunto (mais) civilizado. Tenho resistido a isso, embora sinta que me faltam interlocutores. Mas vamos ao artigo de Jorge Figueira (e a Graça Dias). Figueira baralha e volta a dar com este título. Lembra, ironicamente, que não é na política nem nos políticos que devemos voltar a acreditar, mas em algo bem mais importante e estruturante da nossa vida moderna: a arquitectura (e o seu contexto cultural).

Pacheco Pereira escreveu, há um tempo, no Abrupto uma nota que desde aí nunca mais me esqueci:

«É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. (...) A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos.»

Seduz(iu)-me a facilidade com que se pode fazer a transposição destas palavras para a arquitectura. Ver a arquitectura como actor previligiado no cenário cultural é uma esperança que alimento mas que, inevitavelmente, sofre várias vezes de períodos de desânimo pois é «(t)udo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada.» Por isso me interesso tanto pela crítica cultural, em especial pela crítica de arquitectura. Porque só aí, só nas palavras escritas, se pode testar a validade cultural da arquitectura. E é a partir dessa validade cultural que se pode exigir uma educação do povo nesta área, ou seja, transformar a arquitectura num tema contemporâneo e presente.

É isso que Graça Dias consegue fazer. Jorge Figueira diz que há quem veja os textos de Graça Dias agora reunidos mais como divulgação e não tanto como crítica, para depois defender que não concorda, categorizando-os como verdadeira crítica. Percebo esta hesitação. De facto, e porque Graça Dias escolhe para objecto de crítica exemplos que passaram a priori pelo «juízo de aceitação», a prosa apresentada parece ser dirigida especialmente a quem ainda não experimentou as obras mencionadas. Ou seja, Graça Dias dá claramente a primazia à divulgação do tema escolhido. Mas é no modo como o faz que se encontram as razões para definir os textos como crítica. Claro que seria preferível ter, em Portugal, um universo crítico mais maduro, mais instalado, que permitisse a existência de críticas negativas, de divergências claras sobre as opções arquitectónicas. Como isso não acontece a crítica vê-se na missão de dizer bem, correndo o risco de perder acutilância e pertinência, ou de ser catalogada de corporativismo (Graça Dias é também arquitecto). Aliás, algumas das obras analisadas corporificam um mapa de referências arquitectónicas que são bem distantes das que são patentes nas obras de Graça Dias. Não há nesses casos (Souto Moura e Carrilho da Graça, para dar dois exemplos de arquitectos que Graça Dias publicamente admira) partilha de causas comuns que permitissem, à partida, uma crítica de aceitação fácil. Como realça Jorge Figueira, a crítica de Graça Dias não passa pela erudição do especialista ou pelo facilitismo da identificação das influências, nem sequer por mapeamento nacional e internacional da arquitectura apresentada. O que Graça Dias faz é ver com olhos de ver, tão ingénuos quanto possível. Ou seja, coloca-se na pele do transeunte (leitor) que se interroga sobre um objecto, um edifício, um acontecimento novo. Começa quase do zero. E ao fazê-lo justifica a arquitectura, valida-a. Prova a sua vitória e a sua importância. Educa o (nosso) olhar.

Vejo agora neste título de Jorge Figueira, Voltar a Acreditar, uma referência ao período Moderno (do Estilo Internacional de Philip Johnson). Então acreditava-se no poder salvífico da arquitectura (crença aliada a utopias socialistas, está certo). Essa crença foi mais tarde substituída por um cinismo pós-moderno que, talvez mais por consequência do que por intenção, acabou por afastar a arquitectura da sociedade, tornando-a elitista. O que Graça Dias tenta fazer é voltar a criar uma (necessária) empatia entre (todos) nós e a (boa) arquitectura. É uma tarefa ingrata.